O Budismo está numa posição interessante e peculiar. É historicamente uma tradição sem Deus, já que Buda foi apenas um homem, que atingiu a Iluminação, a Compreensão. Mas diferentemente das outras grandes tradições vivas do planeta (Hinduismo, Judaismo, Cristianismo, Islamismo...) que tem um Deus e são então consideradas religiões, entre os próprios budistas há divergências. Grande parte, se não a maior parte, a considera uma filosofia, não uma religião.
Mas, o que é exatamente uma religião?
Há controvérsias. Se considerarmos o significado da palavra-mãe, “religar”, tudo o que nos leva a uma conexão com a Consciência, Deus, ou o que for que tenha criado ou que mantém o Universo em que estamos, é uma religião. Já se levarmos em conta a concepção de que religião é uma entidade com estrutura (hoje até empresarial) organizada numa crença, com lideranças representativas, níveis de autoridade, missão, objetivos (terrenos e/ou não), supervisão, princípios, ética, controles econômicos e financeiros, etc., somente algumas são, mesmo que eventualmente não religuem nada com coisa nenhuma. Não vamos nem entrar no mérito do fato de a “autoridade reconhecida” do seu iniciador ou líder ser autêntica ou não, universal ou não.
Essa particularidade de não ter um Deus, fato que torna o Budismo não competitivo com as outras religiões, que às vezes até matam em nome do seu Deus, fez com que o budismo se harmonizasse com facilidade com as religiões e seitas com que fez contato nas várias culturas, produzindo uma grande variedade de colorações resultantes, todas chamadas de budismo.
Somado a isso, a grande ironia é que a truculenta China num gesto “brucutu” criticado pelo Ocidente (só levemente criticado, por medo e interesses) invadiu unilateralmente o Tibet, provocou uma fuga em massa de monges budistas para a Índia e Ocidente, incluindo o próprio Dalai Lama e mais 80 mil seguidores. Foi uma forma de preservar a tradição budista tibetana. É visível o efeito dessa migração em termos de “conversões” de pessoas na Europa, EUA, e América Latina para onde muitos foram. Por essas e outras o governo chinês tem agora que ficar pedindo aos países que não apóiem o Tibet, nem recebam o seu líder nos eventos organizados pelos monges exilados e aclimatados pelo mundo. Foi uma má decisão...
O Dalai Lama, além de chefe da tradição budista, como o papa é para o Cristianismo, acumulava a função incômoda de chefe de Estado do Tibet, da qual parece finalmente ter se livrado há pouco, segundo suas mais recentes declarações. Ele é um exemplo claro, aliás o único do planeta, da possibilidade de conciliar Religião e Estado, o secular e o sagrado, de uma forma harmônica. Os outros exemplos dessa junção são frequentemente tirânicos e assustadores. É interessante notar-se a habilidade com que ele desempenha as duas funções, antes e no exílio na Índia, além de uma terceira que é a mestria de administrar mansa e discretamente o complicador de estar hospedado num pais concorrente e vizinho da China. Coisa de mestre.
Ele tem muito o que ensinar como chefe de estado e como ser humano, testado em duras situações, a esses pseudo líderes que estão aí mentindo e traindo seus representados.
Ele tem muito o que ensinar como chefe de estado e como ser humano, testado em duras situações, a esses pseudo líderes que estão aí mentindo e traindo seus representados.
E por falar em mestria, nos eventos da sua vinda ao Brasil, infelizmente tingido por situações inevitáveis do oportunismo da nossa época, abordou 5 pontos contundentes, alguns dos quais surpreenderam a platéia presente nos vários eventos:
Corrupção – Este ponto, feito de encomenda para nós brasileiros, que tratamos bandidos e corruptos como visitas, foi apresentado como “o novo câncer do mundo”. Por que será que ele tocou nesse tema aqui no Brasil? Não é preciso ser nenhum gênio para responder. Basta ler as notícias políticas e econômicas. Uma pena que não havia nenhum representante do governo central e seu partido, notoriamente condescendentes quando não indutores, protetores e acobertadores da corrupção desenfreada. Talvez por receio de uma "saia justa", esse governo e o seu partido não enviaram representante. O único presente, do governo municipal, foi vaiado.
Pobreza – Filha da corrupção e portanto da avidez, a pobreza já poderia ter sido eliminada várias vezes no país, se tivesse recebido um investimento igual ao que é desviado pela mãe. Não seriam necessárias as famigeradas Bolsas-de-Todos-os-Tipos, artifícios gerados pelo governo para escondê-la com subsídios, ao invés de erradicá-la via educação e desenvolvimento, como fizeram alguns paises asiáticos .
Secularismo – Essa afirmação defendendo a visão laica, não religiosa do secularismo pegou todo mundo de surpresa, e só um primaz de uma tradição sem Deus poderia fazer. Ele sabiamente alega que deve ser respeitada a posição de muita gente que não é atraída por nenhuma religião, mesmo com as promessas de compaixão que todas prometem (e quase nenhuma, aliás, entrega).
Ética – O caminho de uma “cultura de paz” vai depender necessariamente do desenvolvimento e universalização de uma ética, inicialmente dentro de cada um de nós. Não só nos negócios, mas na sociedade em geral, nas relações de todos os tipos. Esse é o remédio real para combater a corrupção, aliado à Educação.
Educação – É o último citado, mas o mais importante. Ele disse que “é a tarefa das próximas gerações” e defendeu a sua importância desde o Jardim da infância até a faculdade. Foi onde ele recebeu mais aplausos, o que é um sinal claro de que a classe presente que tem acesso à educação é que conhece a importância dela e pode, através do voto, interromper o curso do que está aí hoje.
“Cabe a vocês dar uma forma ao século 21. Um mundo de compaixão pode ser criado”.
Ao despedir-se disse “A minha geração logo vai dar tchauzinho e ir embora”, ou seja, a tarefa é de vocês. Virem-se. Resolvam.
De tudo o que falou, não há nada que já não sabíamos, mas é bom ouvir isso de um Dalai Lama.