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domingo, 9 de junho de 2013

A Explicação Tolteca de "como vemos o mundo"

Como dissemos em "O Mar Escuro da Consciência...", o jornal The New York Times em 2001 afirmou: "Somos incrivelmente afortunados em ter os livros de Carlos Castaneda. Tomados em conjunto, formam uma obra que está entre o melhor que a ciência da antropologia já produziu". Compartilhamos dessa visão. A obra está entre as melhores coisas produzidas no século passado na humanidade.
Por isso decidimos apresentar os seis pontos básicos explicativos nos quais se assenta a visão tolteca de "como o ser humano vê a realidade do mundo através dos sentidos". Na obra essa visão é chamada de "As 6 proposições explicativas" e foi anexada num apêndice no final do livro O Presente da Águia em português e talvez na edição espanhola. Não existe na edição em inglês, não sabemos porque.
Esse texto de hoje é longo, denso, e deveria ser lido com intervalos para digerir o que se leu. Quem já leu a obra ou pelo menos as 5 ou 6 postagens sobre Castaneda neste blog terá mais facilidade para compreender, principalmente a postagem O Mundo Mágico Tolteca de Dom Juan e Castaneda, onde alguns conceitos do universo tolteca estão explicados, como o Intento, O Mar Escuro da Consciência, os comandos da Águia, ponto de aglutinação, o desnate, círculos de poder, etc. Quem quiser acessar essas postagens no blog, clique a palavra Castaneda em "Pesquise neste blog", á esquerda, na página inicial.
Infelizmente as traduções brasileiras traíram os leitores dos livros, fato este reconhecido por uma das tradutoras, mas nós re-traduzimos os termos neste texto, seguindo os conceitos toltecas
Vamos lá:

As 6 proposições explicativas

"Apesar das assombrosas manobras que Dom Juan fez com a minha consciência, durante anos eu persistia com teimosia em tentar avaliar o que ele fazia racionalmente. Embora tenha escrito longamente sobre essas manipulações, escrevi sempre de um ponto de vista experimental, e, sobretudo, de um ângulo estritamente racional. Imerso como estava na minha própria racionalidade, eu era incapaz de reconhecer as metas do seu ensinamento. Para poder entender a extensão destes objetivos com certo grau de precisão, foi necessário que eu “perdesse minha forma humana” e “chegasse à totalidade de mim mesmo”.
Os ensinamentos de Dom Juan tinham como objetivo me guiar no segundo estágio do desenvolvimento do guerreiro: a compreensão e total aceitação de que há outro tipo de conscientização dentro de nós. Este estágio era dividido em duas categorias. A primeira e mais abrangente, para a qual pediu a ajuda de Dom Genaro, era a que lidava com duas atividades. Consistia em mostrar-me certos processos, ações e métodos organizados para exercitar minha conscientização. A segunda preocupava-se com a apresentação de seis proposições explicativas.
Em vista da dificuldade que tive em deixar minha racionalidade aceitar o que me estava sendo ensinado, Dom Juan apresentou essas proposições explicativas em termos do meu preparo escolástico.
A primeira coisa que fez como introdução, foi criar uma divisão em mim por meio de um soco preciso aplicado na minha omoplata direita, soco esse que me fez entrar num estado invulgar de conscientização - estado que eu era incapaz de me lembrar quando voltava ao normal.
Até aquele ponto minha conscientização tinha um inegável senso de continuidade, que eu acreditava ser o resultado da minha experiência de vida. Eu achava que era um todo e que podia ser responsável por tudo o que tinha feito. Sobretudo, estava convencido de que o centro daquela conscientização encontrava-se na minha cabeça. Contudo, Dom Juan me provou com seu soco que existe um centro na espinha, à altura das omoplatas, que é obviamente um local de intensificada conscientização.
Quando o questionei sobre a natureza daquele soco, Dom Juan explicou que o nagual é um líder que tem a responsabilidade de abrir os caminhos, e que deve ser impecável, a fim de passar a seus guerreiros um espírito de confiança e clareza. Só nessas circunstâncias o nagual se encontra na posição de aplicar o soco nas costas e forçar uma mudança de conscientização; pois é o poder do nagual que nos leva a fazer essa transição. Se o nagual não for um praticante impecável, não há mudança, como aconteceu quando eu tentei em vão fazer os aprendizes entrarem num estado de elevada conscientização batendo nas suas costas antes de nos aventurarmos a atravessar a ponte.
Perguntei a Dom Juan o que acontecia naquela mudança de conscientização. Ele disse que o nagual tem de aplicar o soco numa região precisa, que varia de pessoa para pessoa, mas que se localiza sempre na área geral das omoplatas. Um nagual deve “ver” a fim de determinar o ponto, localizada na periferia do corpo luminoso da pessoa e não no próprio corpo físico; uma vez identificado o local, ele mais empurra que bate, formando assim uma concavidade, uma depressão na casca luminosa. O estado de elevada conscientização que resulta desse soco dura enquanto a depressão permanece. Algumas cascas luminosas voltam à forma original por si só, outras têm de ser apertadas em outra região para retornarem ao normal, e outras ainda nunca voltam à forma de ovo.
Dom Juan explicou que os videntes vêem a conscientização como um brilho peculiar. A conscientização da vida diária é um brilho no lado direito, estendendo-se do corpo físico à periferia de nossa luminosidade. A elevada conscientização é um brilho mais intenso, associado a uma grande velocidade e concentração, brilho esse que satura a periferia do lado esquerdo.
Disse que os videntes explicam o que acontece com o soco do nagual como um deslocamento temporário de um centro localizado no casulo luminoso do corpo. As emanações da Águia são na realidade avaliadas e selecionadas para o uso desse centro. O soco desregula sua função normal.
Através de suas pesquisas, os videntes concluíram que os guerreiros devem ser colocados em estado de desorientação. A mudança na maneira com a qual a conscientização opera nessas condições torna esse estado um campo ideal para elucidar os comandos da Águia, permitindo que o guerreiro funcione como se estivesse com a conscientização da vida diária, com a diferença de poder focalizar tudo o que quiser com uma força e clareza sem precedentes.
Dom Juan falou que minha situação era semelhante à que ele próprio tinha experimentado. Seu benfeitor criou uma profunda divisão nele, fazendo-o trocar várias vezes da conscientização do lado direito para o esquerdo e vice-versa. A clareza e liberdade do seu lado esquerdo se opunham diretamente às racionalizações e defesas sem fim do lado direito. Disse que todo guerreiro é lançado nas profundezas dessa mesma situação que se molda por essa polaridade, e que o nagual cria e reforça essa divisão como um meio de liderar os aprendizes à convicção de que existe uma conscientização não exploradas pelos seres humanos.

1 - O que percebemos como "mundo" são os comandos (emanações) da Águia (ou o Mar Escuro da Consciência".
Dom Juan explicou que o mundo que percebemos não tem existência transcendental. Nossa familiaridade com ele nos leva a acreditar que o que percebemos é um mundo de objetos existentes exatamente como os percebemos, quando na verdade não há um mundo de objetos, mas sim um universo de emanações da Águia.
Essas emanações representam a única realidade imutável. É uma realidade que engloba tudo o que existe, o perceptível e o não-perceptível, o conhecível e o não-conhecível.
Os videntes que vêem as emanações da Águia chamam-nas de comandos por causa da sua força compulsória. Todas as criaturas vivas são compelidas a usar as emanações, e usam-nas sem nunca saberem o que elas significam. O homem padrão interpreta-as como realidade. E os videntes que vêem as emanações interpretam-nas como o regulamento.
Apesar dos videntes verem as emanações, não há um meio deles saberem o que estão vendo. Ao invés de se complicarem em conjeturas inúteis, os videntes entram numa especulação funcional de como os comandos da Águia podem ser interpretados. Dom Juan insistia em dizer que intuir uma realidade que transcende o mundo que percebemos fica no nível de conjetura; não é suficiente supor que os comandos da Águia são percebidos de uma vez só por todas as criaturas vivas da terra e que não há uma criatura que perceba igual à outra. Os guerreiros devem ter como objetivo presenciar o fluxo das emanações e “ver” como o homem e os outros seres vivos usam-nas para construir seu mundo perceptível.
Quando eu propus o uso da palavra "descrição" em vez de comandos da Águia, Dom Juan esclareceu que não estava construindo uma metáfora. Disse que a palavra "descrição" tem uma conotação de concordância do homem, e que o que percebemos deriva de um comando no qual a concordância do homem é deixada de fora.

2 - A atenção é o que nos faz perceber os comandos da Águia como a ação do "desnate".
Dom Juan disse que a percepção é uma faculdade física cultivada por todos os seres vivos da terra; nos seres humanos o resultado final é conhecido pelos videntes como "atenção". Acrescentou que qualquer tentativa de defini-la é perigosa, pois transforma uma realização mágica numa coisa comum. Descreveu a atenção como fisgar e canalizar a percepção. Disse que é a nossa maior realização individual, cobrindo toda a gama de alternativas e possibilidades humanas.
Fez uma distinção precisa entre alternativas e possibilidades As alternativas humanas são nossa capacidade de escolher como pessoas que funcionam dentro do seu meio social. Nosso raio de ação nessa esfera é bastante limitado. As possibilidades humanas são nossa capacidade de alcance como seres mágicos.
Desenvolveu um esquema classificatório de três tipos de atenção, enfatizando que chamá-los de "tipos" podia levar a dúvidas. São, na verdade, três níveis de conhecimento - a primeira, a segunda e a terceira atenção, cada uma com seu domínio independente, cada uma completa por si só.
Para um guerreiro nos estágios iniciais de treino, a primeira atenção é a mais importante das três. Dom Juan disse que suas proposições explicativas eram tentativas de trazer a um primeiro plano o modo pelo o qual a primeira atenção funciona, algo que passa completamente despercebido por nós. Considerava imperativo que os guerreiros compreendessem a natureza da primeira atenção se quisessem aventurar-se nas outras duas.
Explicou que para a primeira atenção lidar com os comandos da Águia ela foi ensinada a mover-se instantaneamente por um espectro completo das emanações da Águia, sem de qualquer forma dar importância a isso, a fim de alcançar as "unidades perceptíveis" que todos nós aprendemos a aceitar como perceptíveis. Essa realização da nossa primeira atenção é conhecida pelos videntes como "desnate" porque engloba a capacidade de afastar as emanações supérfluas e escolher as emanações a serem enfatizadas.
Dom Juan elaborou esse processo tomando como exemplo a montanha com que estávamos nos deparando naquele momento. Argumentou que a minha primeira atenção, quando eu olhava a montanha, tinha desnatado um infinito número de emanações, para obter um milagre de percepção, um desnate que é conhecido de todos os seres humanos porque cada um deles próprios o alcançou por si mesmo.
A argumentação dos videntes é que tudo o que a primeira atenção afasta a fim de obter um desnate não pode ser recuperado dela em nenhuma condição. Do momento em que aprendemos a perceber em termos de desnates, as emanações supérfluas deixam de ser registradas por nossos sentidos. Para elucidar esse ponto ele me deu como exemplo o desnate "corpo humano". Disse que nossa primeira atenção é completamente ignorante das emanações que formam a casca externa luminosa do nosso corpo físico; nosso casulo em forma de ovo não está sujeito à percepção; as emanações que o tornariam perceptível foram descartadas em favor daquelas que tornam possível à primeira atenção perceber o corpo físico como é conhecido por nós.
O objetivo perceptivo a ser atingido pelas crianças enquanto estão adquirindo maturidade, é aprender a isolar as emanações apropriadas a fim de ser capazes de canalizar a sua percepção caótica e transformá-la na primeira atenção; ao fazer isso aprendem a construir os desnates. Todos os seres humanos maduros que rodeiam as crianças ensinam-lhes como desnatar. Cedo ou tarde as crianças aprendem a controlar sua primeira atenção para perceber os desnates em termos semelhantes aos que seus mestres percebem.
Dom Juan ficava admirado com nossa capacidade de trazer ordem ao caos de percepção. Afirmava que cada um de nós, a nosso próprio modo, é um mágico magistral, e nossa magia consiste em impregnar de realidade os desnates que nossa primeira atenção aprendeu a construir. Nossa percepção em termos de desnates provém dos comandos da Águia, mas a percepção desses comandos como objetos provém do nosso poder, nosso Dom de mágica. Nosso erro, por outro lado, é que sempre acabamos sendo parciais ao esquecermos que nossos desnates são reais apenas no sentido de que os percebemos como reais, em virtude do poder que temos de fazer isso. Dom Juan chamava a isso erro de julgamento, que destrói em nós a riqueza de nossas origens misteriosas.

3 - Os desnates recebem significado do primeiro anel de poder.
Dom Juan disse que o primeiro anel de poder é a força que se desprende das emanações da Águia para agir exclusivamente na nossa primeira atenção. Explicou que foi descrita como "anel" devido ao seu dinamismo, seu movimento ininterrupto. Foi chamado de anel de "poder", primeiro por seu caráter obrigatório, e segundo por sua capacidade única de parar suas obras, mudá-las ou reverter sua direção.
Seu caráter obrigatório se faz ver melhor pelo fato de que não somente é premente à primeira atenção construir e perpetuar desnates, mas ela pede a concordância de todos os participantes. A concordância de reprodução fiel de desnates é exigida de todos nós, pois nossa concordância ao primeiro anel de poder tem de ser total.
É precisamente essa concordância que nos dá a certeza (errada) de que os desnates são objetos existentes como tal, independentes da nossa percepção. Além do mais, a obrigatoriedade do primeiro anel de poder não cessa depois da nossa concordância inicial, mas exige que renovemos continuamente tal concordância. Temos de operar durante toda a nossa vida, por exemplo, como se cada um de nossos desnates fosse perceptivamente o mesmo para todos os seres humanos, a despeito da língua e da cultura. Dom Juan admitia que a coisa é séria demais para ser vista como uma piada, mas que o caráter compulsório do primeiro anel de poder é tão intenso que nos força a crer que se uma "montanha" pudesse ter consciência própria, ver-se-ia como o desnate que aprendemos a construir.
Para os guerreiros, a característica mais válida do anel de poder é sua capacidade de interromper seu fluxo de energia ou de pará-lo completamente. Dom Juan disse que é uma capacidade latente que existe em todos nós como uma unidade de cópia (backup). Em nosso mundo estreito de desnates não há necessidade de ser usada. Como nos apoiamos e defendemos com a rede da primeira atenção, não temos consciência de que possuímos recursos ocultos do qual nem suspeitamos. Se uma escolha alternativa nos é apresentada, tal como a opção do guerreiro em utilizar a segunda atenção, a capacidade latente do primeiro anel de poder pode ser posta em funcionamento com resultados espetaculares (NR: e não “falhos”, conforme traduzido!!!).
Dom Juan enfatizou que o processo envolvido em ativar essa capacidade latente é a maior realização do feiticeiro; é chamado de bloqueio funcional do primeiro anel de poder. Explicou que as emanações da Águia, que já foram isolados pela primeira atenção para construir o mundo da vida diária, exercem uma inflexível pressão sobre a primeira atenção. Para que essa pressão cesse de agir, é preciso que seja deslocada. Os videntes chamam a isso interrupção ou parada do primeiro anel de poder.

4 - "Intento" é a força que move o primeiro anel de poder.
Dom Juan explicou que o intento não se refere a ter uma intenção, ou a querer uma coisa ou outra, mas a uma força imponderável que faz com que tenhamos atitudes que podem ser descritas como intenção, desejo, volição, e assim por diante. Don Juan não a definiu como uma condição de ser, vinda de si próprio, produzida por socialização ou reação biológica, mas sim como uma força particular, íntima, que possuímos e usamos individualmente como uma chave que faz com que o primeiro anel de poder se mova de formas aceitáveis. O intento é o que dirige a primeira atenção a focalizar qualquer das emanações da Águia dentro de um certo âmbito. E o intento é também o que comanda o primeiro anel de poder a interromper ou parar fluxo de energia dele.
Dom Juan sugeriu que eu pensasse no intento como numa força invisível que existe no Universo, desconhecida de si própria (?) e ainda assim agindo sobre tudo - força que cria e mantém os desnates.
Afirmou que os desnates devem ser recriados incessantemente, a fim de serem impregnados de continuidade. Para recriá-los toda vez com o frescor necessário para formar um mundo vivo, temos de intentá-los toda vez que os construímos. Por exemplo, temos de intentar a "montanha" em toda sua complexidade para o desnate ser completamente materializado. Disse que para um observador, comportando-se puramente na base da primeira atenção, sem a interferência do intento, a "montanha" pode parecer um desnate inteiramente diferente. Pode talvez parecer um desnate "forma geométrica" ou "mancha amorfa de coloração". Para que o desnate "montanha" seja completo, o observador tem de intentá-lo, quer involuntariamente, através da força compulsória do primeiro anel de poder, quer deliberadamente, através do treino do guerreiro.
Ele salientou três modos pelos quais o intento vem a nós. 
* O primeiro e mais comum é conhecido pelos videntes como "intento do primeiro anel de poder". É um intento cego que nos vem puramente ao acaso. É como se tivéssemos sido postos em seu caminho, ou como se o intento tivesse sido posto no nosso. Inevitavelmente nos encontramos presos em suas malhas sem termos a menor idéia do que está nos acontecendo.
* O segundo meio de nos depararmos com o intento é quando ele nos vem por sua própria conta. Isso exige um grau considerável de determinação, um senso de propósito da nossa parte. Só com nossa capacidade de guerreiros conseguimos nos colocar voluntariamente no caminho do intento, acenar para ele, por assim dizer. Dom Juan explicou que sua insistência em ser um guerreiro impecável nada mais era que um esforço de deixar o intento saber que ele estava se colocando no seu caminho.
Dom Juan dizia que os guerreiros chamam a esse fenômeno "poder". Então, quando falam em ter poder pessoal, referem-se ao fato de o intento chegar a eles por sua própria conta. O resultado disso, dizia ele, podia ser descrito como uma facilidade em encontrar novas soluções - ou a facilidade em causar efeitos nos acontecimentos ou nas pessoas. É como se as possibilidades desconhecidas previamente pelos guerreiros se tornassem evidentes de repente. Assim, um guerreiro impecável nunca planeja nada antes do tempo, mas seus atos são tão decisivos que parecem ter sido planejados detalhadamente de antemão.
* O terceiro meio de encontrarmos o intento é o mais raro e o mais complexo dos três; acontece quando o intento nos permite que nos adaptemos a ele. Dom Juan descrevia aquele estado como o verdadeiro momento de poder - a culminação de uma luta interminável pela impecabilidade. Só os guerreiros supremos o atingem, e enquanto permanecem nesse estado o intento permite que eles a manipulem à vontade. É como se o intento tivesse se fundido naqueles guerreiros, e ao fazer isso os tivesse transformado numa força pura e ilimitada. Os videntes chamavam a esse estado "intento do segundo anel de poder", ou "vontade".

5 - O primeiro anel de poder pode ser detido por um bloqueio funcional da capacidade de construir desnates.
Dom Juan disse que a função dos não-fazeres é criar uma obstrução na focalização habitual da nossa primeira atenção. Os não fazeres são, nesse sentido, manobras designadas a preparar a primeira atenção para o bloqueio funcional do primeiro anel de poder, ou em outras palavras, a interrupção do intento.
Ele explicou que esse bloqueio funcional, o único método de utilizar sistematicamente a capacidade latente do primeiro anel de poder é uma interrupção temporária que o benfeitor cria na capacidade de construir desnates dos seus discípulos. É uma  premeditada e poderosa intromissão artificial, à primeira atenção, designada para empurrá-la além das aparências dos conhecidos desnates; uma intromissão conseguida por meio da obstrução do intento do primeiro anel de poder.
Disse que para levar a cabo essa interrupção o benfeitor trata o intento como um processo, como se ela fosse um fluxo, uma corrente de energia que pode eventualmente ser cessada ou ser reorientada. A visou repetidas vezes que se tem de reconhecer que uma interrupção dessa natureza é um choque de tal magnitude que pode forçar o primeiro anel de poder a parar completamente a qualquer hora; é impossível concebermos tal situação nas nossas condições normais de vida. É inconcebível que possamos des-andar os passos que demos ao consolidarar nossa percepção, mas é viável que sob o impacto dessa interrupção possamos ser colocados numa posição perceptiva muito semelhante aos nossos inícios, quando os comandos da Águia eram emanações que ainda não tínhamos impregnado de significado.
Dom Juan costumava dizer que qualquer procedimento que o benfeitor pudesse usar para criar essa interrupção devia ser intimamente ligado com o seu poder pessoal. Portanto , um benfeitor não usa nenhum processo para manipular o intento, mas sim o move e o faz utilizável pelo aprendiz através do seu poder pessoal.
Em meu caso, Dom Juan atingiu o bloqueio funcional do primeiro anel de poder por meio de um processo complexo, uma combinação de três métodos: a ingestão de plantas alucinógenas; a manipulação do corpo; a manipulação do intento.
No início apoiou-se muito na ingestão de plantas alucinógenas, aparentemente em vista da inflexibilidade do meu lado racional. O efeito delas foi tremendo, mas ainda assim retardou a interrupção que ele procurava. O fato daquelas plantas serem alucinógenas fez com que minha razão aceitasse reunir todos seus recursos disponíveis e continuasse mantendo as rédeas do controle. Fiquei convencido de que podia explicar com lógica tudo o que estava sentindo, juntamente com as proezas inconcebíveis que Dom Juan e Dom Genaro costumavam realizar, para criar as interrupções, como distorções perceptivas causadas pela ingestão dos alucinógenos. Por outro lado, contudo, não havia meio possível de eu poder ter escapado ao efeito do bloqueio do primeiro anel de poder, que Dom Juan tinha programado atingir.
Dom Juan disse que o efeito mais notável das plantas alucinógenas era o que eu interpretava, sempre que as ingeria, como uma sensação peculiar de que tudo à minha volta exsudava uma extraordinária riqueza. Via cores, formas, detalhes que nunca tinha visto antes. Ele utilizou essa condição da minha habilidade elevada de perceber, e com uma série de ordens e comentários me forçou a um estado de agitação nervosa. Ele então manipulou meu corpo e me fez trocar a conscientização da direita para a esquerda e vice-versa, até criar visões fantasmagóricas ou cenas extremamente reais com criaturas em três dimensões que positivamente não podiam existir no mundo.
Explicou que quando a relação entre nosso intento e os desnates que construímos é quebrada, nunca mais pode ser restaurada. Daí por diante adquirimos a capacidade de captar uma corrente de que ele denominava "intento fantasma", ou o intento dos desnates  que não estão presentes no momento ou lugar da interrupção, mas que tornam o intento deles acessível a nós, através de algum aspecto da memória.
Afirmou que com a suspensão do intento do primeiro anel de poder nós nos tornamos receptivos e maleáveis; o nagual pode então introduzir o intento do segundo anel de poder. Ele estava convencido de que as crianças têm uma posição de receptividade semelhante; sendo desprovidas de intento, elas estão prontas a serem marcadas com qualquer intento que seus mestres lhes dêem.
Depois de um período de ingestão contínua de plantas alucinógenas, Dom Juan cortou totalmente o uso delas. Atingiu, no entanto, maiores interrupções em mim ao manipular meu corpo e me fazer mudar os estados de conscientização, juntamente com manobras do intento. Para aquele efeito ele usava quaisquer fenômenos capazes de apagar perceptivamente os limites delineados dos desnates, tais como chuva, relâmpago, crepúsculo e escuridão. Através de uma combinação de comandos hipnotizadores (e comentários adequados), ele criava uma corrente de “intento fantasma” e eu era levado a sentir os desnates familiares como coisas inconcebíveis, que só eu estava presenciando, sem a concordância de qualquer outra pessoa da terra.  Ele definiu isso como “uma rápida olhada na imensidão da Águia”.
Dom Juan explicou que a concordância que temos um com o outro sobre a existência de nossos desnates, além de ser uma combinação, é também um elo de associação. Esse elo é baseado no caráter compulsório do primeiro anel de poder. Exigindo uma concordância nossa em relação à construção fiel dos desnates, o primeiro anel de poder cria em nós não só a certeza de que esses desnates são objetos como também nos dá a certeza de que esses desnates são absolutamente homogêneos entre os membros da nossa espécie. Esse elo de associação não precisa ser reiterado. Uma vez convencidos de sua existência, ele se torna uma base de apoio para nós durante toda nossa vida.

Dom Juan me guiou magistralmente através de inúmeras interrupções do intento, até que eu? fiquei convencido, como vidente, que meu corpo mostrava o efeito do bloqueio funcional do primeiro anel de poder. Ele disse que podia ver uma capacidade invulgar no meu casulo em forma de ovo, em volta da região das minhas omoplatas. Descreveu-a como uma rugosidade que se formava exatamente como se a casca de luminosidade fosse um lençol de músculo sendo contraído pelos nervos.
Para mim, o efeito do bloqueio funcional do primeiro anel de poder era conseguir apagar a certeza que eu tinha tido toda a vida de que o que meus sentidos percebiam era "real". Entrei tranqüilamente num estado de silêncio interior. Dom Juan disse que o que dá aos guerreiros aquela extrema falta de confiança que seu benfeitor sentiu no fim da vida, aquela resignação à derrota que ele próprio estava sentindo, é o fato de que apenas uma olhadela na imensidão da Águia, já nos deixa sem esperança. A esperança é o resultado de nossa familiaridade com nossos desnates e a idéia de que podemos controlá-los. Em tais momentos só o caminho dos guerreiros pode nos fazer persistir em nosso esforço de descobrir o que a Águia ocultou de nós, mas sem esperança de jamais compreender o que descobrirmos.

6 – A segunda atenção (NR: este título foi suprimido na edição em português)
Dom Juan explicou que o exame da segunda atenção devia começar com a constatação de que essa força do primeiro anel de poder que nos encaixota é uma concreta fronteira física. Os videntes descreveram-na como uma parede de névoa, uma barreira que pode ser sistematicamente levada à nossa conscientização por meio do bloqueio do primeiro anel de poder; então pode ser penetrado através do treino do guerreiro.
Ao penetrar na parede de névoa, entra-se num extenso estado intermediário. A tarefa dos guerreiros é atravessá-la até alcançar outra linha limite, que têm de penetrar a fim de entrarem em o que é propriamente o outro “si mesmo” ou a segunda atenção.
Dom Juan disse que ambas as linhas limites são perfeitamente distinguíveis. Quando os guerreiros penetram na parede de névoa sentem que seus corpos estão sendo apertados, ou sentem um intenso tremor dentro da cavidade de seus corpos, basicamente à direita do estômago ou pelo meio do corpo, da direita para a esquerda. Quando perfuram a segunda linha, sentem um estalo agudo na parte superior do corpo, como o som de um pequeno galho seco sendo partido em dois.
As duas linhas que limitam as duas atenções e as selam individualmente são conhecidas pelos videntes como linhas paralelas. Selam as duas atenções porque se estendem até o infinito, nunca permitindo uma travessia, a não ser se forem perfuradas.
Entre as duas linhas há uma área de conscientização específica, que os videntes chamam de limbo ou mundo entre as linhas paralelas. É um espaço real entre dois enormes âmbitos de emanações da Águia, emanações essas que estão dentro das possibilidades de conscientização do homem. Um é o âmbito que forma o eu da vida diária, e o outro é o âmbito que forma o outro eu. Como o limbo é uma área de transição, os dois âmbitos de emanações se sobrepõem lá. A fração do âmbito com o qual estamos familiarizados, que se estende sobre aquela área, prende uma orla de nosso primeiro anel de poder; sua capacidade de construir desnates nos força a perceber uma quantidade de desnates que são quase iguais aos da nossa existência diária, só que parecendo bizarros e torcidos. Assim, o limbo tem características específicas que não mudam arbitrariamente cada vez que se entra lá. Há nele características físicas que se assemelham ao que consideramos aspectos físicos nos desnates da nossa vida diária.
Dom Juan afirmou que a sensação de peso que se sente no limbo é devido à carga crescente colocada na nossa primeira atenção. Na área posterior à parede de névoa, ainda podemos nos comportar como nós mesmos; é como se estivéssemos num mundo grotesco porém ainda reconhecível. À medida que nos aprofundamos para longe da parede de névoa, torna-se progressivamente mais difícil reconhecer seus aspectos ou comportar-se em termos familiares a nós mesmos.
Explicou que a parede de névoa podia se parecer com qualquer outra coisa, mas que os videntes optaram por acentuar a que consome menos energia; visualizá-la como uma parede de névoa não envolve esforço algum.
O que existe além da segunda linha limite é conhecido pelos videntes como o outro eu, ou o mundo paralelo; e o ato de penetrar através de ambos os limites é conhecido como "cruzar as linhas paralelas".
Dom Juan achava que eu captaria esses conceitos com mais firmeza se descrevesse cada esfera de conscientização como uma específica predisposição de percepção. Disse que na esfera da conscientização da vida diária estamos indissoluvelmente emaranhados nas tendências perceptivas da primeira atenção. Do momento em que o primeiro anel de atenção começa a construir os desnates, o modo de construí- los se torna nossa tendência normal de percepção. Quebrar a força que ata a tendência perceptiva da primeira atenção é quebrar a primeira linha limite. Nossa tendência perceptiva normal então passa para a área intermediária entre as linhas paralelas. Continua-se a construir desnates quase normais por algum tempo. Mas quando se aproxima do que os videntes chamam de segunda linha limite, a tendência perceptiva da primeira atenção começa a diminuir, perdendo a força. Dom Juan disse que essa transição é marcada por uma súbita incapacidade de lembrar ou de perceber, através do auto-exame, o que se está fazendo.
Quando a segunda linha limite é alcançada, o outro eu começa a agir sobre os guerreiros que estão fazendo a viagem. Se são inexperientes, sua consciência fica vazia. Dom Juan afirmou que isso acontece porque eles se aproximam de um espectro das emanações da Águia que ainda não tem uma tendência perceptiva sistematizada para eles. Minhas experiências com La Gorda e a mulher nagual além da parede de névoa foram um exemplo dessa incapacidade. Viajei para o outro eu mas não pude dar conta do que tinha feito, simplesmente porque minha segunda atenção ainda estava sem formulação e não me permitiu lidar com coisa alguma que tinha percebido.
Dom Juan explicou que se começa a conquistar o segundo anel de poder forçando a segunda atenção a acordar de sua dormência. O bloqueio funcional do primeiro anel de poder realiza isso. Então a tarefa do mestre é recriar a condição que lançou o primeiro anel de poder, a condição de ser saturado de intento. O primeiro anel de poder foi colocado em movimento pela força da intento, que nos foi dada por quem nos ensinou como desnatar. Como meu mestre, ele estava me dando então um novo intento que iria criar um novo ambiente perceptual.
Dom Juan disse que se leva toda uma vida de disciplina incessante, que os videntes chamam de intento inflexível, para preparar o segundo anel de poder a construir desnates vindos do outro âmbito das emanações da Águia. Aperfeiçoar a tendência perceptiva do eu paralelo é uma proeza de valor incomparável que poucos guerreiros realizam. Silvio Manuel era um desses poucos.
Dom Juan aconselhou-me a não tentar deliberadamente aperfeiçoar isso. Se viesse a acontecer, seria um processo natural que se desenvolveria sem grande esforço. Explicou que a razão dessa quase indiferença reside na consideração prática de que aperfeiçoar essa tendência faz com que se torne mais difícil quebrá-la, pois a meta dos guerreiros é a capacidade de quebrar as duas tendências perceptivas a fim de entrar na terceira atenção".

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O “Não fazer” (Leitura Transversal)

As Atlantas em Tula - Imagens do não fazer
O Não fazer é um mistério. À primeira vista parece que é “não fazer nada”, ou “deixar de fazer algo” ou qualquer outra coisa nessa linha. Mas não é.
Sob esse nome disfarçado de não fazer, se esconde uma técnica e disciplina poderosa usada pelos xamãs toltecas do Antigo México para engendrar um estado que induz a entrada do aprendiz na chamada Segunda Atenção. Nela temos o poder de “ver” o mundo (do jeito que os videntes vêem) e cujo poder de ver/sentir engloba não só perceber o corpo e o mundo físicos, mas perceber o corpo e o mundo energéticos, ou seja, "ver" o ovo luminoso que todos nós somos e não percebemos habitualmente, "ver" os filamentos luminosos dotados de inteligência que permeiam todo o Universo e que ao serem sensibilizados pelo nosso “ponto de aglutinação” formam o mundo que vemos e onde vivemos, e mais uma pá de coisas...
Vamos falar disso hoje (o texto é longo – preparem-se para ler em partes), mas tem um formato didático e simples, algo como ler pelo avesso, batizado de Leitura Transversal, e inventado por um louquinho que anda por aí escrevendo blogs. Leitura Transversal é nada mais do que “ler apenas o tema  que interessa dentro de  uma obra qualquer”.  Quem já leu os índices remissivos da Bíblia, do Alcorão, da Torá, ou qualquer obra extensa, sabe o que é. Imaginem: eu quero saber na Bíblia tudo sobre o assunto "a Graça”, por exemplo. Vou ao índice e acho todas as passagens sobre “a graça”. Legal, não é? A Leitura Transversal é o não fazer de ler (rsrs).

A informática facilitou essa operação porque hoje no Word ou outro editor de texto onde estão as obras digitalizadas, pode-se selecionar pelo comando “localizar” todas as vezes que um palavra ou expressão está escrita. Então é só ler o texto indicado pelo “localizar”. Nós fizemos isso na obra completa de Castaneda e “cruzamos” transversalmente a obra obtendo um a um vários temas importantes que estavam dispersos nela. Um deles é o não fazer. Quem se interessar pode se aprofundar lendo os próprios livro inteiros.
Grande parte das citações do não fazer fazem parte do capítulo 15 inteiro do livro Viagem a Ixtlan que aborda exclusivamente o tema. Para os interessados  é muito interessante lê-lo inteiro de uma vez só, no livro. Muitas outras citações estão no livro O Presente da Águia.
Vamos lá:

CITAÇÕES

“- Já lhe disse que o segredo de um corpo forte não está no que você faz com ele, mas no que não lhe faz - falou, por fim.
- Agora, chegou a hora de você não fazer o que faz sempre. Fique aqui sentado até partirmos e não faça.
- Não estou entendendo, Dom Juan.
Pôs as mãos sobre meus apontamentos e os tirou de mim. Cuidadosamente, fechou as páginas de meu caderno, prendeu-o com seu elástico e depois atirou-o como um disco dentro do chaparral.
Fiquei chocado e comecei a protestar, mas ele tapou minha boca com a mão. Apontou para um arbusto grande e disse-me que fixasse a atenção não nas folhas, mas nas sombras das folhas. Disse que correr no escuro não precisava de ser provocado pelo temor, e podia ser uma reação muito natural de um corpo jubilante que sabia o que não fazer. Ficou repetindo em meu ouvido direito que não fazer o que eu sabia como fazer" era a chave do poder. No caso de olhar para uma árvore, o que eu sabia como fazer era focalizar imediatamente a folhagem. As sombras das folhas ou os espaços entre as folhas nunca me ocupavam. Suas últimas advertências foram para começar a focalizar as sombras das folhas de um único galho e depois, aos poucos, passar a toda a árvore e não deixar que meus olhos voltassem para as folhas, pois o primeiro passo propositado para armazenar o poder pessoal era permitir ao corpo não fazer.
Talvez fosse devido à minha fadiga ou excitação nervosa, mas fiquei tão absorto nas sombras das folhas que, quando Dom Juan se levantou, eu conseguia quase agrupar as massas escuras de folhagens tão bem como eu normalmente agrupava a folhagem. O efeito geral era espantoso. Eu disse a Dom Juan que gostaria de me demorar mais. Ele riu e deu um tapinha em meu chapéu.
- Já lhe disse - falou ele. - O corpo gosta de coisas como esta.
Depois, explicou que eu devia deixar que meu poder armazenado me guiasse pelas moitas até meu caderno. Empurrou-me delicadamente para o chaparral. Andei a esmo por um momento e depois encontrei-o. Pensei que, subconscientemente, eu devia estar lembrado da direção em que Dom Juan o atirara. Esclareceu o fato, dizendo que eu fora diretamente ao caderno porque meu corpo estivera mergulhado durante horas em não fazer.
Viagem a Ixtlan, pág. 172

“Eu estava escrevendo minhas impressões das vizinhanças quando Dom Juan, depois de um longo silêncio, falou num tom dramático.
- Eu o trouxe aqui para lhe ensinar uma coisa - disse ele. - Você vai aprender a não fazer. Mais vale falar a respeito porque não há outro meio de você prosseguir. Achei que você poderia pegar o não fazer sem eu ter de dizer nada. Mas enganei-me.
- Não sei de que está falando, Dom Juan.
- Não faz mal. Vou dizer-lhe uma coisa que é muito simples, mas muito difícil de fazer; vou falar-lhe sobre não fazer, a despeito do fato de não haver meio de falar sobre isso, pois é o corpo que o faz.
Olhou de relance e depois disse que eu tinha de prestar a maior atenção ao que ele ia falar. Fechei o caderno, mas, para assombro meu, ele insistiu para eu continuar a escrever
- Não fazer é tão difícil e tão possante que você nem deve mencioná-lo - continuou ele. - Só pode fazê-lo quando tiver parado o mundo; só então é que você pode falar a respeito livremente, se é isso que você quer”
Dom Juan olhou em volta e apontou para uma pedra grande. - Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer – disse ele.
Nós nos olhamos e ele sorriu. Esperei uma explicação, mas ele ficou calado. Por fim, tive de falar que não havia entendido o que ele queria dizer
- Isso é fazer! - exclamou.
- Como?
- Isso também é fazer
- De que é que está falando, Dom Juan?
- Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você você e eu eu.
Disse-lhe que a explicação dele não esclarecia coisa alguma. Ele riu e coçou as têmporas.
- É este o problema de se falar - disse ele. - Sempre faz a gente confundir as questões. Se a gente começa a falar a respeito de fazer, sempre se acaba abordando outro assunto. É melhor apenas agir
"Tome aquela pedra, por exemplo. Olhar para ela é fazer, mas vê-la é não fazer"
Tive de confessar que as palavras dele não estavam fazendo sentido para mim.
- Mas fazem, sim! - exclamou. - Mas você está convencido do contrário porque isso é você fazendo. É assim que você age em relação a mim e ao mundo. - Tornou a apontar para a pedra.
- Aquela pedra é uma pedra por causa de todas as coisas que você sabe fazer em relação a ela - continuou. - Chamo isso de fazer. Um homem de conhecimento, por exemplo, sabe que aquela pedra só é uma pedra por causa de fazer, de modo que, se não quiser que a pedra seja uma pedra, basta ele não fazer. Entende o que eu digo?
Eu não estava entendendo nada. Ele riu e fez uma nova tentativa para explicar
- O mundo é o mundo porque você conhece o fazer necessário para torná-lo o mundo - disse ele. - Se você não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente.
Examinou-me com curiosidade. Parei de escrever. Só queria escutá-lo. Continuou a explicar que, sem esse certo "fazer", não haveria nada de conhecido naquele ambiente.”
Viagem a Ixtlan, pág. 178

.”- Digo que você torna isto uma pedrinha porque conhece o fazer necessário para isso - falou. - Agora, para poder parar o mundo você tem de parar de fazer.
. Ele parecia saber que eu continuava sem entender e sorriu, sacudindo a cabeça. Depois, pegou um galhinho e apontou para a borda irregular da pedrinha.
- No caso desta pedrinha - continuou - a primeira coisa que fazer lhe faz é diminuí-la até este tamanho. Por isso, a coisa certa a fazer, o que um guerreiro faz quando quer para o mundo, é aumentar a pedrinha, ou qualquer outra coisa, não fazendo.
Levantou-se e colocou a pedrinha num rochedo e depois disse que eu me aproximasse para examiná-la. Recomendou que eu olhasse para os buracos e depressões da pedrinha e tentasse distinguir seus mínimos detalhes. Falou que, se eu conseguisse distinguir os detalhes, os buracos e depressões desapareceriam e eu entenderia o que significa não fazer.
- Esse raio de pedrinha ainda vai deixá-lo maluco hoje - disse ele.”
Viagem a Ixtlan, pág. 179

“- Fazer o leva a separar a pedrinha da pedra maior - continuou. - Se quiser aprender a não fazer, digamos que você tem de uni-las.
Apontou para a sombrinha que a pedrinha lançava na pedra grande e disse que não era uma sombra, e sim uma cola que ligava as duas. Depois, virou-se e afastou-se, dizendo que mais tarde me viria controlar.
Fiquei olhando para a pedrinha por muito tempo. Não conseguia focalizar minha atenção nos mínimos detalhes dos buracos e depressões, mas a pequena sombra que a pedrinha lançava sobre a pedra grande tornou-se um ponto muito interessante. Dom Juan tinha razão: era como uma cola. Movia-se e variava. Eu tinha a impressão de que estava sendo espremida de debaixo da pedrinha.
Quando Dom Juan voltou, eu lhe contei o que tinha observado sobre a sombra.
- É um bom começo - disse ele. - Um guerreiro pode descobrir uma porção de coisas através das sombras. - Depois, ele sugeriu que eu pegasse a pedrinha e a enterrasse em algum lugar
- Por quê? - perguntei.
- Está olhando para ela há muito tempo. Ela agora tem alguma coisa de você. Um guerreiro sempre tenta mudar a força de fazer transformando-o em não fazer. Fazer seria deixar a pedrinha por aí, pois não é mais do que uma pedrinha. Não fazer seria proceder com essa pedrinha como se fosse alguma coisa mais do que uma simples pedra. Nesse caso, aquela pedra o absorveu por muito tempo e agora é você, e, sendo assim, não a pode deixar por aí, e tem de enterrá-la.
Se quiser ter poder pessoal, porém, não fazer seria transformar aquela pedra em um objeto de poder
- Posso fazer isso agora?
- Sua vida não está bastante ajustada para fazer isso. Se você visse, saberia que sua preocupação transformou aquela pedrinha em uma coisa bem sem atrativo; e, portanto, a melhor coisa que você pode fazer é cavar um buraco e enterrá-la e deixar que a terra absorva seu peso.
- Tudo isso é verdade, Dom Juan?
- Dizer que sim ou que não seria fazer. Mas como você está aprendendo a não fazer, devo dizer-lhe que realmente não tem importância se tudo isso é verdade ou não. É aqui que o guerreiro leva vantagem sobre o homem comum. O homem, comum se, importa em saber se as coisas são verdadeiras ou falsas, mas um guerreiro não. Um homem comum procede de maneira específica com as coisas que ele sabe serem verdade e de maneira diversa com o que sabe não ser verdade. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age e acredita no que faz. Mas se as coisas são supostamente falsas, ele não quer agir, ou não crê no que faz. Um guerreiro, ao contrário, age em ambos os casos. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age a fim de estar fazendo. Se se supõe que as coisas são falsas, ele ainda assim age, a fim de não fazer. Entende o que digo?
- Não. Não estou entendendo nada - respondi.      “
Viagem a Ixtlan, pág. 180

“- Eu estava implicando um pouco com você - disse Dom Juan, quando voltei e tornei a me sentar - Mas sei que, se você não falar, não entende. Falar para você é fazer, mas falar não serve e, se você quiser entender o que eu quero dizer com não fazer, tem de executar um exercício simples. Como estamos interessados em não fazer, não importa que faça o exercício agora ou daqui a dez anos.
Mandou que eu me deitasse e pegou meu braço direito, dobrando-o no cotovelo. Depois, virou minha mão para a palma ficar voltada para a frente; curvou meus dedos, de modo que minha mão ficou na posição de quem está segurando uma maçaneta e depois começou a mover meu braço para a frente e para trás, num movimento circular que parecia o ato de empurrar e puxar uma alavanca presa a uma roda.
Dom Juan disse que um guerreiro executava esse "movimento cada vez que queria expulsar alguma coisa de seu corpo, como uma doença ou uma sensação desagradável. A intenção era empurrar e puxar uma força adversa imaginária até a pessoa sentir um objeto pesado, um corpo sólido, opondo-se aos movimentos livres da mão. No caso do exercício, não fazer consistia em repeti-lo até se sentir o corpo pesado com a mão, a despeito do fato de a pessoa não poder acreditar que fosse possível senti-lo.
Comecei a mover o braço e, dali a pouco, minha mão ficou gelada. Comecei a sentir uma espécie de polpa em volta dela. Era como se eu estivesse remando numa substância líquida, pesada e viscosa.
Dom Juan fez um movimento súbito e agarrou meu braço para parar o movimento. Meu corpo todo tremia como se abalado por alguma força oculta. Examinou-me quando me sentei e, depois, andou em volta de mim, antes de tornar a sentar-se onde estava antes.
- Já fez bastante - disse ele. - Pode executar esse exercício em outra ocasião, quando tiver mais poder pessoal.
- Fiz alguma coisa errada?
- Não. Não fazer é só para guerreiros muito fortes e você ainda não tem o poder de lidar com isso. Agora, só vai apanhar coisas horrendas com as mãos. Portanto, faça-o pouco a pouco, até sua mão não ficar mais fria. Quando ficar quente, você chega a poder sentir as linhas do mundo com ela.”
Viagem a Ixtlan, pág. 181

“Parou para me dar tempo de perguntar a respeito das linhas.
Mas antes de eu ter oportunidade, começou a explicar que havia um número infinito de linhas que nos ligavam às coisas. Disse que o exercício de não fazer que ele acabava de descrever ajudaria a qualquer pessoa a sentir uma linha que saísse da mão que se movia, uma linha que a pessoa poderia colocar ou lançar sempre que quisesse. Dom Juan disse que aquilo não passava de um exercício porque as linhas formadas pela mão não eram suficientemente duráveis para ter um valor real numa situação de fato.
- Um homem de conhecimento utiliza outras partes de seu corpo para produzir linhas duráveis - explicou.
- Que partes, Dom Juan?
- As linhas mais duráveis que o homem de conhecimento produz partem do meio do corpo. Mas ele também as pode fazer com os olhos.
- São linhas de verdade?
 - Por certo.
- Pode-se vê-las e tocá-las?
- Digamos que se pode senti-las. A parte mais difícil do modo de vida de um guerreiro é entender que o mundo é uma sensação.
Quando a pessoa está não fazendo, sente o mundo, e o consegue por meio dessas linhas.
Ele parou e me examinou com curiosidade. Ergueu as sobrancelhas, abriu os olhos e piscou. O efeito foi como os olhos de uma ave piscando. Quase imediatamente, senti uma sensação de desconforto e repugnância. Era como se alguma coisa estivesse fazendo pressão sobre minha barriga.
- Entende o que digo? - perguntou Dom Juan, desviando o olhar.
Falei que estava com náuseas e ele respondeu, displicentemente, que sabia disso e que estava tentando fazer com que eu sentisse as linhas do mundo com os olhos dele. Eu não podia admitir a idéia de que ele mesmo me estivesse fazendo sentir daquele jeito. Exprimi minhas dúvidas. Eu não podia conceber a idéia de que ele estava causando minha sensação de náusea, pois ele não tinha tido qualquer contato físico comigo.
- Não fazer é muito simples, mas muito difícil - disse ele. - Não é uma questão de entender, mas de dominar a coisa. “Ver”, naturalmente, é a realização final de um homem de conhecimento, e ver só é conseguido quando a pessoa parou o mundo pela técnica de não fazer
Sorri, sem querer. Não tinha entendido o que ele queria dizer
- Quando a gente faz alguma coisa com as pessoas - continuou - o interesse devia ser só de apresentar o caso aos corpos delas. E isso que tenho feito com você até agora, deixando que seu corpo saiba. Quem se importa se você entende ou não?
- Mas isso não é justo, Dom Juan. Quero entender tudo, pois, do contrário, vir aqui seria uma perda do meu tempo.
-. Uma perda do seu tempo! - exclamou, imitando meu tom de voz. - Você é mesmo convencido.”
Viagem a Ixtlan, pág. 182

“A escalada foi um negócio terrível. Era um verdadeiro alpinismo, só que não tínhamos cordas para nos ajudar e proteger. Dom Juan me disse repetidamente que não olhasse para baixo; e teve de me puxar umas duas vezes, quando comecei a deslizar pela pedra. Eu estava muito vexado porque Dom Juan, tão velho, tinha de me ajudar. Disse-lhe que estava em má forma física porque tinha muita preguiça de fazer exercício. Respondeu que uma vez que a pessoa alcançasse um certo nível de poder pessoal, os exercícios ou qualquer treinamento desse tipo não eram necessários, pois a única coisa que se precisava, para estar numa forma impecável, era empenhar-se em não fazer
Viagem a Ixtlan, pág. 183

Apontou para uma grande pedra bem diante de nós.
- Olhe para a sombra daquela pedra - falou. - A sombra é a pedra e, no entanto, não é. Observar a pedra a fim de saber o que é a pedra é fazer, mas observar a sombra é não fazer
"As sombras são como portas, as portas de não fazer. Um homem de conhecimento, por exemplo, sabe dos sentimentos mais íntimos dos homens observando suas sombras."
- Há movimento nelas? - perguntei.
- Pode-se dizer que há movimento nelas, ou pode-se dizer que as linhas do mundo aparecem nelas, ou pode-se dizer que os sentimentos vêm delas.
- Mas como é que os sentimentos podem vir de sombras, Dom Juan?
- Acreditar que as sombras são apenas sombras é fazer - explicou. - Essa idéia é um pouco burra. Pense nisso assim. Há tanto mais em tudo no mundo que, obviamente, deve haver mais nas sombras também. Afinal de contas, o que as torna sombras é apenas o nosso fazer
Ficamos em silêncio por muito tempo. Eu não sabia o que dizer
Viagem a Ixtlan, pág. 184
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Esclareceu suas instruções dizendo que, ao procurar um lugar de repouso, a pessoa tinha de olhar sem focalizar, mas, ao observar as sombras, era preciso olhar atravessado, conservando, porém, focalizada uma imagem nítida. A idéia era deixar que uma sombra se superpusesse à outra, atravessando-se os olhos. Explicou que, por este processo, a pessoa podia verificar uma certa sensação que emanava das sombras. Comentei que suas palavras eram vagas, mas ele garantiu que não havia realmente meio de descrever o que queria dizer
Minha tentativa de fazer o exercício foi vã. Esforcei-me até ficar com dor de cabeça. Dom Juan não ligou a mínima a meu fracasso.
Escalou um pico em forma de domo e gritou lá de cima para eu procurar duas pedras estreitas e compridas. Mostrou com as mãos o tamanho das pedras que queria..
Encontrei dois pedaços de pedra e dei-os a ele. Dom Juan colocou cada pedra em uma fenda, a uma distância de uns 30 centímetros, mandou que eu me postasse por cima delas, virado para o oeste, dizendo para eu fazer o mesmo exercício com as sombras delas.
Dessa vez, a coisa foi totalmente diferente. Quase imediatamente, consegui atravessar os olhos e percebi suas sombras individuais como se estivessem fundidas numa só. Reparei que o fato de olhar sem convergir as imagens dava à sombra única que eu tinha formado uma profundidade incrível e uma espécie de transparência. Fiquei olhando, sem poder acreditar. Cada buraco da pedra, na área em que meus olhos estavam focalizados, era nitidamente distinguível; e a sombra composta, superposta neles, era como uma película de uma transparência indescritível.
Eu não queria piscar, com medo de perder a imagem que estava mantendo tão precariamente. Por fim, meus olhos doloridos me obrigaram piscar mas não perdi em absoluto a visão do detalhe verdade, ao umedecer a córnea, a imagem ficou ainda mais nítida. Nessa altura, reparei que era como se eu estivesse olhando de uma altura imensa para um mundo que eu nunca vira. Também reparei que podia percorrer as vizinhanças da sombra sem perder o foco de minha percepção visual. Então, por um instante, perdi a noção de estar olhando para uma pedra. Senti que estava chegando a um mundo, vasto além de tudo o que jamais eu concebera. Essa percepção extraordinária só durou um segundo e depois tudo se desligou. Automaticamente, ergui os olhos e vi Dom Juan de pé, logo acima das pedras, olhando para mim. Ele tapara o Sol com o corpo.
Descrevi a sensação rara que tivera e ele explicou que fora obrigado a interrompê-la porque "viu" que eu ia me perder nela. Acrescentou que era uma tendência natural em todos nós termos caprichos quando ocorriam sentimentos daquela natureza, e que, cedendo a esse capricho, eu quase tinha transformado não fazer em meu velho conhecido fazer. Disse que o que eu devia ter feito era manter a vista sem sucumbir a ela, pois, de certo modo, fazer era uma maneira de sucumbir.”
Viagem a Ixtlan, pág. 185

“Tive de confessar que estava mais aturdido do que nunca com esse não fazer. Os comentários de Dom Juan foram que eu deveria estar satisfeito com o que tinha feito, pois uma vez na vida tinha agido corretamente, que reduzindo o mundo eu o aumentara, e que, embora estivesse longe de sentir as linhas do mundo, havia usado corretamente a sombra das pedras como uma porta para não fazer
A declaração de que eu aumentara o mundo reduzindo-o intrigou-me profundamente. O detalhe da rocha porosa, na pequena área em que meus olhos estavam focalizados, era tão vívido e tão precisamente definido que o topo do pico redondo se tornava um vasto mundo para mim; e, no entanto, era realmente uma visão reduzida da pedra. Quando Dom Juan tapou a luz e eu me encontrei olhando como faria normalmente, o detalhe preciso embaciou-se, os buraquinhos na pedra porosa tornaram-se maiores, a coloração marrom da lava seca tornou-se opaca e tudo perdeu a transparência brilhante que fazia da rocha um mundo verdadeiro.
Viagem a Ixtlan, pág. 186

“Ficamos calados por muito tempo. Depois, comemos, também em silêncio. Foi só depois que o Sol se pôs que ele, de repente, se virou e me perguntou sobre meus progressos em matéria de "sonhar".
Respondi que tinha sido fácil no princípio, mas que, no momento, eu tinha deixado completamente de encontrar minhas mãos
nos sonhos.
- Quando você começou a sonhar, estava usando meu poder pessoal, por isso era mais fácil - disse ele.
- Agora, você está vazio. Mas tem de continuar a tentar até ter suficiente poder seu. Entende, sonhar é o não fazer dos sonhos e, à medida que você progredir em seu não fazer, também progredirá no sonhar. O truque é não deixar de procurar suas mãos, apesar de não acreditar que aquilo que está fazendo tem sentido. Na verdade, como já lhe disse, um guerreiro não precisa acreditar, pois, enquanto continuar a agir sem acreditar, estará não fazendo.
- Nós nos olhamos.
Não há mais nada que lhe possa dizer a respeito de sonhar - continuou ele. - Tudo o que eu possa dizer será apenas não fazer. Mas, se lidar com não fazer diretamente, você mesmo saberá o que fazer no sonhar. Porém, a essa altura, encontrar suas mãos no sonho é essencial, e estou certo de que você as encontrará."
- Não sei, Dom Juan. Não confio em mim.
- Não é questão de confiar em ninguém. Tudo isso é assunto da luta de um guerreiro; e você continuará a lutar, se não sob seu próprio poder, então talvez, sob o impacto de um adversário valoroso, ou com o auxílio de alguns aliados, como o que já o está seguindo.
Fiz um movimento brusco e involuntário com o braço direito. Dom Juan disse que meu corpo sabia muito mais do que eu suspeitava, pois a força que nos estava seguindo estava à minha direita. Falou, em voz baixa e confidencial, que, por duas vezes naquele dia, o aliado tinha chegado tão junto de mim que ele tivera de intervir e detê-lo.
- Durante o dia as sombras são as portas de não fazer - disse ele. - Mas, à noite, como muito pouco fazer prevalece no escuro, tudo é sombra, inclusive os aliados. Já lhe falei sobre isso quando lhe ensinei o passo do poder
Ri alto e meu próprio riso me assustou.
"Tudo o que lhe ensinei até agora foi um aspecto de não fazer - continuou ele. - Um guerreiro aplica não fazer a tudo no fundo e, no entanto, não lhe posso dizer mais a respeito do que Já lhe falei hoje. Deve deixar que seu próprio corpo descubra o poder e a sensação de não fazer"
Tive outro acesso de cacarejar nervoso.
“É burrice sua escarnecer dos mistérios do mundo simplesmente porque conhece fazer o escárnio" - disse ele, com uma cara séria.
Falei que não estava escarnecendo de nada ou ninguém, mas que era mais nervoso e incompetente do que ele pensava.
- Sempre fui assim - disse eu. - E, no entanto, quero modificar-me e não sei como. Sou muito inadequado.
- Já sei que você acha que não presta - disse ele. – Isso é seu fazer. Agora, para afetar esse fazer, vou recomendar que você aprenda outro fazer. De hoje em diante, e por um período de oito dias, quero que você minta para si mesmo. Em vez de se dizer a verdade, que você é podre, feio e inadequado, você se dirá que é o oposto, sabendo que está mentindo e que é completamente sem esperança.
- Mas qual a finalidade de mentir assim, Dom Juan?
- Pode prendê-lo a outro fazer e então pode compreender que ambos os fazeres são mentiras, irreais, e que prendê-lo a qualquer deles é uma perda de tempo, pois a única coisa que é real é o ser em você, que vai morrer. Chegar a esse ser é o não fazer do eu.”
Viagem a Ixtlan, pág. 186

- Digamos que, quando cada um de nós nasce, traz consigo um circulozinho de poder. Esse pequeno círculo é posto em uso quase que imediatamente. Assim, cada um de nós já está preso desde que nasce e os nossos círculos de poder são ligados aos de todos os outros. Em outras palavras, os nossos círculos de poder são ligados ao fazer do mundo a fim de formar o mundo.
- Dê um exemplo que eu possa entender
- Por exemplo, nossos círculos de poder, o seu e o meu, estão ligados neste momento ao fazer esta sala. Estamos formando esta sala. Nossos círculos de poder estão girando e formando esta sala neste momento mesmo.
- Espere, espere - disse eu. - Esta sala está aqui sozinha. Não a estou criando. Não tenho nada a ver com ela.
Dom Juan não parecia estar interessado em meu protesto. Assegurou calmamente que a sala em que estávamos era criada e conservada no lugar por causa da força do círculo de poder de todos.
- Entende, - continuou - cada um de nós conhece o fazer de salas porque, de uma maneira ou de outra, já passamos grande parte de nossas vidas nas salas. Um homem de conhecimento, por outro lado, desenvolve outro círculo de poder. Eu o chamaria o círculo de não fazer, pois é ligado a não fazer. Com esse círculo, portanto, ele pode fazer girar outro mundo.
- O problema com você é que ainda não desenvolveu seu círculo de poder extra e seu corpo não conhece o não fazer - disse ele.
- Nós todos fomos ensinados a concordar sobre fazer – disse ele baixinho. - Você não tem idéia do poder que essa concordância acarreta. Mas, felizmente, não fazer é igualmente milagroso e poderoso.”
Viagem a Ixtlan, pág. 197

“- Você é muito esperto - disse ele por fim. - Volte para onde sempre esteve. Mas dessa vez você está liquidado. Não tem para onde voltar. Não lhe vou explicar mais nada. O que Genaro lhe fez ontem, fez a seu corpo, por isso deixe seu corpo resolver como são as coisas.
O tom de voz de Dom Juan era amistoso mas singularmente indiferente e aquilo me deu uma tremenda sensação de solidão. Exprimi minha tristeza. Ele sorriu. Seus dedos pegaram de leve a parte de cima de minha mão.
- Nós dois somos seres que vamos morrer - disse ele, baixinho. - Não há mais tempo para o que costumávamos fazer. Agora, tem de usar todo o não fazer que lhe ensinei e parar o mundo.
Tornou a pegar minha mão. Seu toque era firme e amistoso; era como uma reafirmação de que ele se interessava e tinha afeição por mim e, ao mesmo tempo, me dava a impressão de um propósito inabalável.
- Este é meu gesto por você - falou, conservando-se agarrado a minha mão por um instante. - Agora, tem de ir sozinho para aquelas montanhas amigas. - Apontou com o queixo para a cadeia de montanhas distante, para sudeste.
Disse que eu teria de ficar lá até meu corpo me mandar parar e então voltar para casa dele. Deixou-me saber que não queria que eu dissesse qualquer coisa, nem esperasse mais, empurrando-me delicadamente na direção de meu carro.
- O que devo fazer lá? - perguntei.
Ele não respondeu, e ficou olhando para mim, sacudindo a cabeça.
- Isso já acabou - disse ele por fim. Em seguida, apontou o dedo para sudeste. - Vá para lá - concluiu, com rispidez.”
Viagem a Ixtlan, pág. 229

- Depois que o aprendiz recebe sua tarefa de feitiçaria, está pronto para outro tipo de instrução - continuou ele. - Aí ele é um guerreiro. No seu caso, como você não era mais aprendiz, eu lhe ensinei as três técnicas que ajudam a sonhar: romper as rotinas da vida, o passo do poder, e não fazer. Você era muito constante, burro como aprendiz e burro como guerreiro. Anotava conscienciosamente tudo o que eu dizia e tudo o que lhe acontecia, mas não agia exatamente conforme eu mandava. De modo que eu ainda tinha de bombardeá-lo com plantas de poder.
Dom Juan então deu-me uma descrição detalhada de como desviar a minha atenção de sonhar, fazendo-me acreditar que o problema importante era uma atividade muito difícil que ele chamara de não fazer, que consistia de um jogo de percepção, de focalizar a atenção em coisas do mundo que normalmente são desprezadas, tais como as sombras das coisas. Dom Juan disse que a sua estratégia fora destacar o não-fazer, impondo a isso o maior segredo.
- Não fazer, como tudo o mais, é uma técnica muito importante, mas não era o ponto principal- disse ele. - Você foi atraído pelo segredo. Você, uma língua de trapo, ter de guardar um segredo.
Ele riu e disse que podia imaginar o trabalho que eu devia ter tido para ficar de boca calada.
Explicou que romper as rotinas, o passo do poder e não-fazer eram alamedas para aprender novos meios de perceber o mundo, e que davam ao guerreiro um vislumbre de incríveis possibilidades de ação. A idéia de Dom Juan era que o conhecimento de um mundo separado e pragmático de sonhar era possibilitado pelo uso dessas três técnicas.”
Porta para o Infinito, pág. 220

“- Dom Juan lhes contou mais algumas coisas sobre as pirâmides, Pablito? - perguntei.
Minha intenção era desviar a conversa sobre a questão específica das Atlantas e ao mesmo tempo ficar próximo dela.
- Disse que uma certa pirâmide lá em Tula era uma guia replicou Pablito ansiosamente.
Pelo tom da sua voz deduzi que ele realmente queria falar. E a atenção dos outros aprendizes me convenceu de que, dissimuladamente, todos queriam trocar opiniões.
- O nagual disse que era uma guia da segunda atenção - continuou Pablito - mas que foi explorada e que destruíram tudo. Ele me falou que algumas pirâmides eram gigantescos lugares de não fazer. Não eram moradas, mas lugares dos guerreiros desenvolverem seus sonhos e exercitarem sua segunda atenção. O que quer que fizessem era registrado em desenhos e figuras nas paredes.
Depois, uma nova espécie de guerreiro deve ter aparecido, uma espécie que não aprovava o que os feiticeiros da pirâmide tinham feito com a segunda atenção, e destruíram a pirâmide com tudo o que havia dentro.
"O nagual acreditava que os novos guerreiros deviam ser guerreiros da terceira atenção, como ele próprio era; guerreiros que ficavam horrorizados com o mal da fixação da segunda atenção. Os feiticeiros das pirâmides estavam ocupados demais com sua fixação para perceberem o que estava acontecendo. Quando perceberam, era tarde demais.”
Pablito tinha uma platéia. Todos na sala, inclusive eu, estavam fascinados com o que ele dizia. Compreendi as idéias que ele apresentava porque Dom Juan já as tinha explicado a mim.
Tinha dito que nosso ser total consiste em dois segmentos perceptíveis. O primeiro é o corpo físico conhecido que todos nós podemos perceber; o segundo é o corpo luminoso, um casulo que só os videntes conseguem perceber, um casulo que nos dá a aparência de ovos luminosos gigantescos. Tinha dito também que uma das metas mais importantes da feitiçaria é alcançar o casulo luminoso, uma meta que é conseguida pelo uso sofisticado do "sonho" e por um empreendimento rigoroso e sistemático a que ele dava o nome de não fazer. Definia o não fazer como um ato pouco familiar, que envolve todo o nosso ser ao forçá-lo a se tornar consciente do seu segmento luminoso.
O Presente da Águia, pág. 19

“Ele enfatizou que todas as ruínas arqueológicas do México, especialmente as pirâmides, eram nocivas ao homem moderno. Descreveu as pirâmides como expressões estranhas de pensamento e ação. Disse que todos os itens, todos os desenhos delas, eram um esforço calculado de recordar aspectos de atenção que eram completamente estranhos a nós. Para Dom Juan não só as ruínas das culturas do passado continham um elemento perigoso; qualquer coisa que fosse o objeto de uma preocupação obsessiva tinha um potencial nocivo.
Ele discutira isso detalhadamente uma vez. Foi uma reação que teve a uns comentários que eu fiz sobre não saber onde guardar minhas notas de campo com segurança. Eu as via de uma maneira muito obsessiva, e estava obcecado com a segurança delas.
- O que eu devo fazer? - tinha perguntado a ele.
- Genaro uma vez lhe deu uma solução - respondera ele.
-Você pensou, como sempre pensa, que ele estava brincando. Ele nunca brinca. Disse que você deveria escrever com a ponta dos dedos em vez de escrever a lápis. Você não o levou a sério sobre isso porque não pode imaginar que este seja o não fazer de tomar notas.
Eu argumentei
Dom Juan argumentou novamente. Disse que tomar notas era um modo de envolver a primeira atenção na tarefa de se lembrar, e que eu tomava notas a fim de me lembrar do que era dito e feito. A recomendação de Dom Genaro não era uma brincadeira, pois escrever com a ponta do meu dedo num pedaço de papel, como não fazer de tomar notas, forçaria minha segunda atenção, a focalizar a minha lembrança sem acumular folhas de papel. Dom Juan achava que o resultado final seria mais preciso e de mais valor que tomar notas. Nunca tinha sido feito, ao que ele soubesse, mas o princípio era sólido.
Pressionou-me a fazer isso por algum tempo. Eu fiquei perturbado. Tomar notas não só funcionava como um método mnemônico
 como também me acalmava. Era minha mania mais construtiva. Acumular folhas de papel me dava uma sensação de objetivo e equilíbrio.
- Quando você se preocupa com o que fazer com as suas folhas - explicou Dom Juan - está focalizando uma parte muito perigosa de você mesmo nelas. Todos nós temos esse lado perigoso, essa fixação. Quanto mais forte ficamos, mais perigosa essa parte se torna. A recomendação para os guerreiros é não ter nenhuma coisa material na qual focalizar seu poder, mas focalizá-lo no espírito, no verdadeiro vôo ao desconhecido, e não em campos triviais. No seu caso, suas notas são o seu escudo. Elas não o deixarão viver em paz.
Senti seriamente que não tinha nenhum modo possível de me dissociar das minhas notas. Dom Juan então concebeu uma tarefa para mim em lugar do não fazer característico. Disse que, para alguém tão altamente possessivo como eu, o modo mais apropriado de me libertar do meu caderno de notas seria desmantelá-lo, jogá-lo pelos ares e escrever um livro. Pensei, naquela época, que aquilo era uma brincadeira maior que a de tomar notas com a ponta dos dedos.
O Presente da Águia, pág. 22

“Don Juan tinha me descrito o sonho de várias maneiras. A mais obscura delas todas me parece agora ser aquela que o define do melhor modo. Ele disse que o sonho é intrinsecamente o não fazer de dormir.
Um não fazer básico designado a ajudar o sonho, era o não fazer de falar, chamado "parar o diálogo interno". Os dois se combinam no sentido de que parar o diálogo interno traz a paz necessária e descansa a mente dos praticantes, e isso por sua vez ajuda-os a controlar seus sonhos. Como o não fazer de dormir, o sonho dá aos praticantes a utilização daquela porção de suas vidas gastas no cochilo. É como se os sonhadores não mais dormissem. Mesmo assim não há mal nisso. Os sonhadores não sentem falta de sono, mas o efeito de sonhar parece ser o aumento do tempo através do uso de um pretenso corpo extra, o corpo sonhador.
Dom Juan explicou-me que o corpo sonhador é às vezes chamado de "o sósia" ou "o outro", porque é uma réplica perfeita do corpo do sonha o outro, dor. É basicamente a energia de um ser luminoso, um esbranquiçado, uma emanação fantasmagórica, que é projetada pela fixação da segunda atenção numa imagem tridimensional do corpo. Explicou que o corpo sonhador não é um fantasma; é tão real quanto qualquer coisa com que lidamos no mundo. Disse que a segunda atenção é inevitavelmente levada a focalizar sobre nosso ser total como um campo de energia, e que transforma essa energia em qualquer coisa apropriada. A coisa mais fácil é, naturalmente, a imagem do corpo físico com o qual já estamos perfeitamente familiarizados em nossa vida diária, através do uso da nossa primeira atenção. O que canaliza a energia do nosso ser total a produzir qualquer coisa que esteja dentro dos limites de possibilidades é conhecido como "vontade". Dom Juan não sabia dizer quais eram esses limites, a não ser que a nível dos seres luminosos os parâmetros são tão amplos que é bobagem tentar estabelecer limites; desta forma a energia de um ser luminoso pode ser transformada, através da vontade, em qualquer coisa.
- O nagual disse que o corpo sonhador se envolve e se prende a qualquer coisa - disse Benigno. - Ele não tem sentido. Disse-me que os homens são mais fracos que as mulheres porque o corpo sonhador do homem é mais possessivo.”
O Presente da Águia, pág. 24

“Uma noite sentamo-nos e muito casualmente começamos a discutir o que sabíamos sobre o sonho. Tornou-se óbvio para nós que havia alguns assuntos-chave aos quais Dom Juan dera ênfase especial.
Primeiro era o ato de sonhar. Na nossa opinião ele começava como um estado de consciência único, ao qual se chegava aprendendo a focalizar o resíduo de consciência que a pessoa ainda tem enquanto dorme, sobre os elementos ou os detalhes dos sonhos da pessoa.
O resíduo de consciência, a que Dom Juan chamava segunda atenção, era levado à ação, ou era aproveitado através de exercícios do não fazer. Achávamos que o não fazer essencial do sonho era um estado de quietude mental, ao qual Dom Juan chamava de "parar o diálogo interno", ou o não fazer de falar. A fim de me ensinar como manejá-lo ele costumava me fazer andar quilômetros com os olhos fixos e fora de foco a um nível logo ao fim da linha do horizonte, permitindo assim que eu tivesse uma visão periférica. Seu método era eficiente por dois motivos: permitia-me parar meu diálogo interno depois de ter tentado durante anos, e treinava minha atenção. Forçando-me a concentrar-me na minha visão periférica, Dom Juan reforçava minha capacidade de me concentrar por longo tempo em uma única atividade.
Mais tarde, quando eu tinha conseguido controlar minha atenção e podia trabalhar durante horas em qualquer tarefa a que me impunha sem me distrair - coisa que nunca antes fora capaz de fazer - ele me disse que o melhor modo de buscar um sonho era me concentrar na área próxima à ponta do esterno, na boca do estômago. Falou que a atenção que um homem necessita para sonhar deriva-se daquela área, mas que a energia a fim de se mover e procurar no sonho origina-se da área a uns três a seis centímetros abaixo do umbigo. Ele chamava a essa energia "vontade" ou poder de selecionar, de acumular. Numa mulher tanto a atenção quanto a energia para o sonho originam-se do ventre.
- O sonho de uma mulher tem de vir do seu ventre porque é esse o seu centro - disse La Gorda. - Para que eu comece a sonhar ou parar o sonho, tudo o que tenho a fazer é colocar minha atenção no ventre. Aprendi a sentir o seu interior. Vejo um brilho avermelhado por um instante e então se dá o seu início.”
O Presente da Águia, pág. 112

“La Gorda disse que Dom Juan lhe falou que qualquer coisa pode servir como um não fazer para ajudar o sonho, desde que force a atenção a permanecer fixa. Ele fazia com que ela e todos os outros aprendizes, por exemplo, olhassem para as folhas e pedras, e encorajava Pablito a formar seu próprio dispositivo de não fazer. Pablito começou com o não fazer de andar para trás. Para se movimentar dava olhadas rápidas para os lados a fim de saber para onde ia e evitar obstáculos no caminho. Dei-lhe a idéia de usar um espelho retrovisor, e ele desenvolveu essa idéia, construindo um capacete de madeira com uma parte que prendia dois espelhos pequenos, a uns doze centímetros do rosto e quatro centímetros abaixo do nível dos olhos. Os dois espelhos não interferiam com sua visão frontal, e, devido ao ângulo lateral no qual estavam presos, cobriam toda a área atrás dele. Pablito se gabava de ter uma visão periférica do mundo de 360º. Auxiliado pelo seu dispositivo podia andar para trás a qualquer distância, ou durante qualquer tempo.”
O Presente da Águia, pág. 114

“Para nosso primeiro não fazer, Silvio Manuel construiu um engradado de madeira grande o suficiente para acomodar La Gorda e eu, de modo a ficarmos sentados de costas um para o outro, com o joelho para o alto. O engradado tinha uma tampa de treliça para deixar passar o ar. La Gorda e eu tínhamos de entrar e sentar na escuridão, em silêncio total, sem dormir. Ele começou fazendo-nos entrar na caixa por breves períodos; depois aumentou o tempo à medida que nos acostumávamos com a coisa, até podermos passar toda uma noite dentro, sem nos mover ou dormir.
A mulher nagual ficou conosco para se certificar de que não mudaríamos nossos níveis de conscientização devido ao cansaço. Silvio Manuel disse que nossa tendência natural sob condições incomuns seria mudar do elevado estado de conscientização para o estado normal, e vice-versa.
O efeito geral do não fazer, toda vez que agíamos, era nos dar uma inigualável sensação de repouso, o que me deixava inteiramente intrigado, já que não podíamos dormir durante nossas longas noites de vigília. Atribuí a sensação de repouso ao fato de estarmos em estado de elevada conscientização, mas Silvio Manuel disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, que a sensação de repouso era resultado de sentarmos com os joelhos para cima.
O segundo não fazer consistia em nos fazer deitar no chão como se fôssemos cachorros enroscados, quase que em posição fetal, apoiados no lado esquerdo, na testa e nos braços dobrados. Silvio Manuel insistiu que fechássemos os olhos tanto quanto possível, abrindo-os apenas quando ele nos mandasse trocar de posição e virar para o lado direito. Disse-nos que o objetivo desse não fazer era forçar nosso sentido de audição a se separar da nossa visão. Como antes, aumentou gradualmente o tempo até que passássemos toda uma noite em vigília.
Silvio Manuel estava então pronto para nos passar para outra área de atividade. Explicou que nos primeiros dois não fazeres tínhamos quebrado uma certa barreira de percepção enquanto ficávamos presos ao chão. Por analogia, comparou os seres humanos às árvores. Somos como que árvores móveis, tendo de alguma forma raízes no chão, raízes essas que nos permitem mover mas que não nos separam do chão. Disse que a fim de estabelecermos equilíbrio tínhamos de desenvolver o terceiro não fazer pendurados no ar. Se tivéssemos êxito enquanto suspensos de uma árvore dentro de um arreio de couro, faríamos um triângulo com nossa intenção, triângulo com base no chão e no seu vértice no ar. Silvio Manuel achava que tínhamos reunido nossa atenção com os dois primeiros não fazeres a ponto de podermos realizar o terceiro perfeitamente, desde o início.”
O Presente da Águia, pág. 187

“Sua alegação era que a percepção sofre um choque profundo quando estamos colocados em estado de quietude no escuro. Nossa audição toma a frente então e os sinais de todas as entidades vivas e existentes à nossa volta podem ser detectados - não apenas com nossa audição, mas por uma combinação dos sentidos auditivos e visuais, nessa ordem. Disse que na escuridão, especialmente enquanto suspensos, os olhos se tornam secundários aos ouvidos.
Ele estava absolutamente certo, como La Gorda e eu descobrimos. Com o exercício do terceiro não fazer Silvio Manuel nos deu uma nova dimensão à nossa percepção do mundo que nos rodeia.
Ele então disse a La Gorda e a mim que o próximo conjunto de não fazer seria intrinsecamente diferente e mais complexo. Relacionava-se ao aprendizado de como lidar com o outro mundo. Era necessário maximizar o esforço, mudando nosso tempo de ação para o início da noite ou o início da madrugada. Disse-nos que o primeiro não fazer do segundo conjunto tinha dois estágios. No primeiro estágio tínhamos de atingir nosso estado mais alerta de elevada conscientização a fim de detectarmos a parede de névoa. Uma vez feito isso, o segundo estágio consistiria em fazer aquela parede parar de girar, a fim de nos aventurarmos no mundo entre as linhas paralelas.
A visou-nos que o que pretendia era nos colocar diretamente na segunda atenção, sem qualquer preparação intelectual. Queria que aprendêssemos os detalhes sem uma compreensão racional do que estávamos fazendo. Sua alegação era que um veado mágico ou um coiote mágico manipula a segunda atenção sem ter nenhum intelecto.
Através da prática forçada de passarmos para trás da parede de névoa, iríamos empreender, mais cedo ou mais tarde, uma permanente alteração no nosso ser total, alteração essa que nos faria aceitar que o mundo entre as linhas paralelas é real, pois é parte do mundo total, como nosso corpo luminoso é parte do nosso ser total.”
O Presente da Águia, pág. 189

“La Gorda e eu tínhamos estado tão envolvidos em nossas viagens por trás da parede de névoa que tínhamos nos esquecido que estava na hora da nossa próxima série de não fazer com Silvio Manuel. Ele nos disse que ela poderia ser devastadora e que consistia em atravessar as linhas paralelas com as três irmãzinhas e os três Genaros, diretamente para a entrada no mundo de total conscientização. Não incluiu Dona Soledad porque seus não fazeres eram destinados apenas a sonhadoras, e ela era espreitadora.
Silvio Manuel acrescentou que esperava que nós nos tornássemos familiarizados com a terceira atenção se nos colocássemos ao pé da Águia (O Mar Escuro da Consciência) diversas vezes. Ele nos preparou para o choque; explicou que as viagens de um guerreiro às dunas de areia desolados eram um passo preparatório para a verdadeira travessia das fronteiras. Aventurar-se para além da parede de névoa num estado de elevada conscientização ou durante um sonho implicava apenas uma porção muito pequena de nossa conscientização total, enquanto que atravessar corporalmente para o outro mundo implicava o comprometimento do nosso ser total.
Silvio Manuel concebera a idéia de usar uma ponte como símbolo de uma verdadeira travessia. Argumentou que a ponte era adjacente a um lugar de poder; e os lugares de poder eram aberturas, passagens para o outro mundo. Achava que seria possível que La Gorda e eu adquiríssemos força suficiente para enfrentar um vislumbre da Águia.”
O Presente da Águia, pág. 192

“- Desculpe - disse. - Você falou que vai me contar sobre sua vida pessoal?
- Por que não? - perguntou ela.
Respondi, usando a explicação que me fora dada por Dom Juan sobre a força negativa da história pessoal e da necessidade que o guerreiro tinha de apagá-la. Terminei dizendo que ele tinha me proibido de falar qualquer coisa sobre a minha vida.
Ela riu com uma voz alta de falsete. Parecia encantada.
- Isso só se aplica aos homens - disse. - O não fazer da sua vida pessoal é contar histórias sem fim, mas nenhuma sobre sua vida real. Como homem, você tem uma história sólida por trás. Uma família, amigos, conhecidos, e todos eles com uma idéia definida sua. Como homem você é responsável. Não pode desaparecer tão facilmente. Para se apagar teria de ter muito trabalho. Meu caso é diferente. Sou mulher, o que me traz muita vantagem. Não sou responsá-vel. Você não sabe que as mulheres não são responsáveis?
- Não entendo o que quer dizer com responsável - falei.
- Quero dizer que a mulher pode desaparecer facilmente replicou. - A mulher pode se casar, por exemplo. Ela pertence ao marido. Numa família com muitos filhos, as filhas são descartadas muito cedo. Ninguém conta com elas, e há possibilidade de umas desaparecerem, sem deixarem vestígio e esses desaparecimentos serem facilmente aceitos.
"O filho, ao contrário, é alguém com quem se conta. Não é fácil para o filho eclipsar-se e desaparecer. E mesmo se fizer isso, deixará vestígios. Ele sente-se culpado se desaparecer. A filha não.
"Quando o nagual o treinou a ficar de boca fechada em relação à sua vida pessoal, pretendia ajudá-lo a superar seu sentimento de ter cometido um erro com sua família e amigos, que contavam com você de uma forma ou de outra.
"Depois de toda uma vida de luta o guerreiro termina apagando-se, naturalmente, mas essa luta tem um preço para o homem. Ele se torna misterioso, sempre em guarda contra si próprio. A mulher já está preparada para se desintegrar no ar. Na verdade, espera-se isso dela.
Como mulher, não sou obrigada ao segredo. Não dou a mínima para isso. Segredo é o preço que vocês homens têm de pagar por serem importantes para a sociedade. A luta é só para os homens, porque eles se ressentem de terem de se apagar e encontrariam modos curiosos de surgirem em algum lugar, de alguma forma. Veja o seu exemplo; você vive fazendo conferências.”
O Presente da Águia, pág. 214

“Disse que seu benfeitor considerava as três técnicas básicas da espreita - o engradado, a lista de acontecimentos a serem recapitulados, e a respiração do espreitador - como sendo as tarefas talvez mais importantes de um guerreiro. Ele achava que uma recapitulação profunda era o meio mais eficiente para se perder a forma humana. Portanto, seria fácil para os espreitadores, depois de recapitularem suas vidas, fazer uso de todos os não fazeres do seu eu, tais como apagar sua história pessoal, perder a auto-importância, quebrar as rotinas, e assim por diante.”
O Presente da Águia, pág. 230

“Dom Juan disse que a função dos não fazeres é criar uma obstrução na focalização habitual da nossa primeira atenção. Os não fazeres são, nesse sentido, manobras designadas a preparar a primeira atenção para o bloqueio funcional do primeiro anel de poder. Ele explicou que esse bloqueio funcional, o único método de utilizar sistematicamente a capacidade latente do primeiro anel de poder é uma interrupção temporária que o benfeitor cria na capacidade de desnatar dos seus discípulos. É uma intromissão artificial; uma invasão deliberada e forçada à primeira atenção, designada para empurrá-la além do verniz superficial dos vestígios familiares; uma intromissão atingida por meio da obstrução da intenção do primeiro anel de poder.”
O Presente da Águia, pág. 258

“Devo ter parecido cético a Don Juan, pois ele explicou que o mundo de nossa auto-reflexão ou de nossa mente era muito inconsistente e era mantido coeso por algumas poucas idéias-chave que serviam como sua ordem subjacente. Quando essas idéias falhavam, a ordem subjacente parava de funcionar.
- Quais são essas idéias-chave, Don Juan?
- Em seu caso, naquela instância em particular, como no caso da audiência daquela curandeira sobre a qual falamos, a continuidade era a idéia-chave.
- O que é continuidade?
- A idéia de que somos um bloco sólido. Em nossas mentes, o que sustenta o nosso mundo é a certeza de que somos imutáveis. Podemos aceitar que nosso comportamento pode ser modificado, que nossas reações e opiniões podem ser modificadas, mas a idéia de que somos maleáveis a ponto de mudar de aparência, a ponto de ser alguma outra pessoa, não é parte da ordem subjacente de nossa auto-reflexão. Sempre que um feiticeiro interrompe essa ordem, o mundo da razão pára.
Desejei perguntar-lhe se quebrar a continuidade de um indivíduo era suficiente para causar o movimento do ponto de aglutinação. Ele pareceu antecipar minha pergunta. Disse que essa quebra era apenas um suavizador. O que ajudava o ponto de aglutinação mover-se era a implacabilidade do nagual.
Comparou então os atos que executara naquela tarde em Guaymas com os atos da curandeira que havíamos discutido previamente. Explicou que a curandeira havia estraçalhado a auto-reflexão das pessoas de sua audiência com uma série de atos para os quais eles não tinham equivalentes em suas vidas diárias - a dramática possessão do espírito, mudança de vozes, abertura do corpo do paciente. Assim que a continuidade da idéia deles próprios foi quebrada, seus pontos de aglutinação estavam prontos para ser movidos.
Lembrou-me de que havia descrito para mim no passado o conceito de parar o mundo. Comentara que parar o mundo era tão necessário para os feiticeiros quanto ler e escrever o eram para mim. Consistia em introduzir um elemento dissonante no tecido do comportamento cotidiano para deter o fluxo de outro modo suave dos eventos ordinários - eventos que eram catalogados em nossas mentes por nossa razão.
O elemento dissonante era chamado não fazer, ou o oposto de fazer. "Fazer" era tudo que fosse parte de um todo para o qual tínhamos um valor cognitivo. Não fazer era um elemento que não pertencia àquele todo mapeado.
- Os feiticeiros, por serem espreitadores, compreendem bem o comportamento humano - disse ele. - Compreendem, por exemplo, que os seres humanos são criaturas de inventários. Saber os itens que entram ou não entram em um inventário em particular é o que torna o homem um estudioso ou especialista em seu campo.
"Os feiticeiros sabem que quando o inventário de uma pessoa comum falha, a pessoa ou aumenta seu inventário ou o mundo de sua auto-reflexão entra em colapso. A pessoa comum está disposta a incorporar novos itens em seu inventário se estes não contradisserem a ordem subjacente do inventário. Mas se os itens contradisserem essa ordem, a mente da pessoa entra em colapso. O inventário é a mente. Os feiticeiros contam com isso quando tentam quebrar o espelho da auto-reflexão.”
O Poder do Silêncio, pág. 165

“- Parece que não vamos conseguir nos livrar dele – disse num tom de resignação. - Vamos caminhar com calma, como se estivéssemos dando um belo passeio no parque, e você me contará a história de sua infância. Este é o momento e o cenário certos para isso. Um jaguar está atrás de nós com um apetite voraz, e você está se lembrando sobre o passado: o perfeito não fazer para estar sendo caçado por um jaguar.
Ele riu alto. Mas quando lhe falei que havia perdido completamente o interesse em contar a história, ele dobrou-se de risos.
- Está me punindo agora por não querer ouvi-lo, não é mesmo?
E eu, é claro, comecei a defender-me. Disse-lhe que sua acusação era definitivamente absurda. De fato perdi o fio da meada.
- Se um feiticeiro não tem auto-estima, não dá uma bosta por ter perdido o fio da história - disse ele com um brilho malicioso nos olhos. - Como você não tem mais qualquer auto-estima, deve contar sua história agora. Conte-a ao espírito, ao jaguar, e a mim, como se não tivesse perdido o fio em momento algum.”
O Poder do Silêncio, pág. 197

“O tópico inicial foi o que definiu como não fazer, uma atividade especialmente projetada para banir de nossas vidas todo o vestígio de cotidianidade. Afirmou que o não fazer é o exercício favorito dos aprendizes, porque os introduzem em um ambiente de maravilha e desconcerto muito refrescante para a energia, cujo efeito sobre a consciência eles chamam de "parar o mundo"
Respondendo a algumas questões, explicou que o não fazer não pode ser racionalizado. Qualquer esforço para tentar entendê-lo, é na realidade uma interpretação do ensino e cai automaticamente no campo de fazer.
"A premissa dos bruxos para tratar com este tipo de prática é o silêncio mental. E a qualidade de silêncio requerido para algo tão descomunal quanto parar o mundo, só pode vir de um contato direto com a grande verdade de nossa existência: que todos nós vamos morrer".
Ele nos aconselhou:
"Se vocês querem conhecer a si mesmos, sejam conscientes de sua morte pessoal. Ela não é negociável e é a única coisa que vocês realmente têm. Todo o resto poderá falhar, mas a morte não, a ela podem dar por certo. Aprendam a usá-la para produzir efeitos verdadeiros em suas vidas.
"Também, parem de acreditar em contos da carochinha, ninguém os quer lá fora. Nenhum de nós é tão importante para que hajam inventado algo tão fantástico como a imortalidade. Um bruxo que tem humildade sabe que o destino dele é o de qualquer outro ser vivo desta terra. Assim, em vez de se iludir com falsas esperanças, ele trabalha concreta e duramente para sair de sua condição humana e tomar a única saída que nós temos: a quebra de nossa barreira perceptual.
"Ao mesmo tempo em que escutam o conselho da morte, façam-se responsáveis por suas vidas, da totalidade das suas ações. Explorem-se, reconheçam-se e vivam intensamente, como vivem os bruxos. A intensidade é a única coisa que pode nos salvar do aborrecimento.
"Uma vez alinhados com a morte, estarão em condições de dar o seguinte passo: reduzir ao mínimo a bagagem. Este é um mundo prisão e é necessário sair como fugitivos, sem levar nada.
Os seres humanos são viajantes por natureza. Voar e conhecer outros horizontes é nosso destino. Por acaso você sai de viagem com sua cama ou com a mesa em que come? Sintetiza sua vida!".
Encontros com o Nagual, pág. 51

"Um método infalível para conseguir o silêncio é através do não fazer, uma atividade que nós programamos com nossa mente, mas que tem a virtude de silenciar os pensamentos uma vez que é começado. Don Juan chamava esse tipo de técnica de 'tirar um espinho com outro'".
Apresentou como exemplos de não fazer: escutar na escuridão, trocando a prioridade de nossos sentidos e o comando que nos força a dormir assim que nós fechamos os olhos. Também, conversar com as plantas, parar de ponta cabeça, caminhar para trás, observar as sombras, a distância ou os espaços entre as folhas das árvores.
"Todas essas atividades são das mais efetivas para silenciar nosso diálogo interno, mas elas têm um defeito: não as podemos sustentar durante muito tempo. Depois de um momento, somos forçados a recuperar nossas rotinas. Um não fazer que é exagerado, automaticamente perde o poder e cai dentro de fazer.
"Se o que nós queremos é acumular silêncio profundo, de efeitos duradouros, o melhor não fazer é a solidão. Junto com a economia da energia e o abandono desses que nos dão por feitos. Aprender a estar só é o terceiro princípio prático do caminho.
"O mundo do guerreiro é a coisa mais solitária que há. Até mesmo quando vários aprendizes se unem para viajar pelas rotas do poder, cada um sabe que está sozinho, que não pode esperar nada do outro nem depender de ninguém. O máximo que ele pode fazer é compartilhar o caminho com aqueles que o acompanham.
"Estar só requer um grande esforço, porque nós ainda não aprendemos a superar o comando genético da socialização. No princípio, o aprendiz deve ser forçado a isto pelo seu mestre, através de armadilhas se for necessário. Mas com o tempo aprende a desfrutá-lo. É normal que os bruxos busquem o silêncio na solidão da montanha ou do deserto e que vivam sozinhos durante longos períodos".
Alguém comentou que essa era "uma perspectiva horrorosa"
Carlos respondeu:
"Horroroso é chegar à velhice como umas crianças choronas!
Encontros com o Nagual, pág. 93