Sogyal Rinpoche - autor do Livro Tibetano do Viver e do Morrer |
Bodisatva:
Por que temos tanto medo da morte?
Sogyal Rinpoche:
Porque por trás do medo da morte está o medo de encarar a si mesmo. O instante da morte é o momento da verdade. Ela é como um espelho, no qual o verdadeiro sentido da vida está refletido. Na tradição monástica cristã há uma expressão em latim, memento mori, que significa lembre-se da morte, ou mais especificamente, lembre-se de que vai morrer. Se você se lembrar da morte, vai entender o que é a vida. A morte é a fundação e o verdadeiro coração do caminho espiritual. Se você se recordar de que vai morrer, vai se lembrar da preciosidade da vida – e essa verdade está presente em todas as grandes tradições: budismo, cristianismo, hinduísmo… Pensar na morte é o cerne do caminho espiritual. Milarepa, o grande santo e poeta que inspirou milhões de seres, disse: Aterrorizado pela morte, refugiei-me nas montanhas, meditei muitas e muitas vezes sobre a incerteza da hora da morte. Mas ao conquistar a fortaleza da natureza da mente infinita e imortal, todo o medo acabou para sempre. É por isso que o meu livro fala tanto dessa contemplação da hora da morte. Existe também uma citação de Maomé. Quando perguntaram a ele como você faz para polir o coração, como você se livra da ferrugem, das aparas do coração? Maomé respondeu: Pela lembrança de Deus e por muito pensar na morte. De fato, pensar na morte é muito próximo de se pensar em Deus, porque a morte traz para você o que Deus é. Mas infelizmente, na vida contemporânea as pessoas não veem a vida e a morte como um todo. Com isso ficam muito apegadas à vida e rejeitam e renegam a morte. Hoje em dia as pessoas também pensam na morte como um tipo de derrota ou de perda. Mas do ponto de vista espiritual, a morte não é uma tragédia a ser temida, mas uma oportunidade preciosa para a transformação.
Bodisatva:
Só que nos esquecemos de lembrar da morte durante a vida, estamos ocupados demais para isso.
Sogyal Rinpoche:
Sim, nos mantemos muito atarefados o tempo todo: é uma preguiça ativa (risos). A morte, por sua vez, nos diz que é preciso parar de nos enganar – quando você acertar as contas com a morte você acerta as contas com sua vida. A morte é o sinônimo da vida, o seu prolongamento; na verdade, ela é a parte mais importante da existência, por isso é que ela acontece no final! (risos). É a morte que vai nos apresentar a conta. Tem uma expressão em francês que diz: Agora, a dolorosa, por favor! (risos). Mas com frequência, só começamos a pensar na morte quando estamos para morrer. Não é um pouco tarde demais? Os ensinamentos nos mostram que deveríamos nos preparar para morrer agora, quando estamos bem, com estado mental feliz, principalmente nos momentos em que você está inspirado, predisposto à introspecção, quando começamos a ver a vida e a morte de uma maneira mais profunda.
Bodisatva:
O que dizer ou fazer quando se está ao lado de uma pessoa que vai morrer?
Sogyal rinpoche:
Sempre que você estiver com uma pessoa que está morrendo, enfatize o que ela realizou de bom durante a vida, o que ela fez bem. Ajude-a a se sentir tão construtiva e feliz quanto possível com relação à existência dela. Concentre- se nas suas virtudes e não nos seus defeitos. A pessoa que está morrendo fica muito vulnerável à culpa, ao remorso e à depressão. Permita que ela expresse isso livremente, ouça-a e escute o que ela diz. Mas, ao mesmo tempo, se o momento for apropriado, não deixe de lembrá-la da sua natureza búdica e encorajá-la a repousar na natureza da mente. Em especial, lembre à pessoa que a dor e o sofrimento não são tudo o que ela é. Encontre a maneira mais hábil e sensível de inspirá- la e dar-lhe esperança, ao invés de enfatizar seus erros. Assim ela poderá morrer num estado mental mais pacífico.
Bodisatva:
Qual a melhor maneira de estar ao lado de quem vai morrer?
Sogyal Rinpoche:
Acho muito importante dizer isso: quando você ajudar alguém nessa condição, o mais importante não é o que você diz, mas o que você é, a sua presença. E a sua presença é especialmente importante se você for um praticante que tem a realização da natureza da mente e puder permanecer nesse estado de realização na presença daquele que está morrendo. Isso é extremamente poderoso. Vejo isso por mim mesmo: nessa presença, o amor que é sustentado pela natureza da mente é o amor apoiado pelos budas. Você se torna como um embaixador deles. O amor inspirado pela natureza da mente é tão poderoso que pode eliminar o medo do desconhecido. Se você puder introduzir essa paz – sentindo muita paz, vendo a natureza da mente se manifestando de uma forma muito poderosa, como uma radiação quente – se você conseguir isso será extraordinariamente poderoso e benéfico.
Bodisatva:
O que mais pode contribuir para que a pessoa sinta um maior conforto psicológico e espiritual nesse momento?
Sogyal Rinpoche:
A pessoa que está morrendo precisa ter a coragem de perceber que esse é o tempo da reconciliação com amigos e parentes, e assim eliminar do coração todo ódio e ressentimento. Nem todos creem numa religião formal, mas acho que quase todos acreditam no perdão, e você pode ser de incomensurável utilidade para a pessoa que vai morrer ajudando-a a ver a aproximação da morte como o tempo perfeito para reconciliação e a avaliação de uma vida. Todas as religiões dão ênfase ao poder do perdão, que nunca é tão necessário e tão profundamente sentido como no momento da morte. Por meio do perdoar e do ser perdoado, nos purificamos da escuridão gerada por aquilo que fizemos e nos preparamos para a jornada através da morte. Com base na sua prática espiritual, você pode transformar o ambiente e inspirar sentimentos sagrados como amor, compaixão e devoção na mente da pessoa que está morrendo, no momento da sua morte.
Bodisatva:
E como ajudar uma pessoa assustada que não tem nenhuma crença espiritual?
Sogyal Rinpoche:
Um conselho simples é: olhe nos seus olhos com amor e confiança, seja claro, invoque a presença dos Budas ou de Cristo e dê-lhes o ensinamento essencial porque no momento da morte eles vão estar abertos a isso, particularmente se você for genuíno e autêntico e não estiver pregando. Outra coisa importante quando formos ajudar alguém que está morrendo é dar o nosso amor, com todo o coração, sem quaisquer condições, tão livres quanto possível de apego, sem medo, destemidamente, amar.
Bodisatva:
E se a pessoa não quiser falar sobre a morte ou não aceitar que está morrendo?
Sogyal Rinpoche:
Você ainda pode amá-la, dizer coisas amorosas sem mencionar a morte. Se entramos em contato com a natureza da nossa mente, se a estabilizamos através da nossa prática espiritual e a integramos às nossas vidas, então o amor que temos para dar só pode ser profundo, porque vem de uma fonte mais profunda, do nosso ser mais interno, que é o coração da nossa natureza iluminada. Esse coração tem um poder especial de libertar a nós mesmos ou a alguém que esteja morrendo. Esse tipo de amor, que é o amor além de todo apego, é como o amor divino de que se fala tanto no cristianismo quanto no hinduísmo; é o amor de todos os budas. Nesse estado sem fabricação, mesmo sem pensar, podemos sentir a presença de Buda sem esforço. É como se tivéssemos nos tornado o representante dele, com nosso amor apoiado pelo seu amor e infundido com a sua bênção e compaixão. O amor que brota verdadeiramente da natureza da mente é tão abençoado que tem o poder de dissipar o medo do desconhecido, de dar refúgio à ansiedade e de dar serenidade, paz e, além disso, trazer inspiração na morte e além dela. E descobriremos por nós mesmos que quanto mais conseguirmos purificar nossa prática espiritual, mais natural e mais eficaz será a ajuda espiritual que daremos para os que estão necessitados, porque o modo como nós somos, o nosso ser, a nossa presença é muito mais importante do que o que dizemos ou fazemos. E quando você ajuda desta forma, é extraordinário, não só para a pessoa que está morrendo, mas também para a família.
Bodisatva:
Existe algum treinamento para quem quiser se aperfeiçoar nessa prática?
Sogyal Rinpoche:
Sim. Você pode desenvolver um treinamento chamado cuidado espiritual com elementos emocionais e práticos. São empregados elementos da espiritualidade, mas sempre relacionado à religião da pessoa. Até agora já treinamos cerca de 30 mil pessoas, entre enfermeiros e médicos, sobre como dar esse cuidado espiritual no momento da morte.
Bodisatva:
Além de estar na natureza da mente, para quem tem essa realização, o que mais pode ser feito nesse momento? Como podemos nós mesmos nos preparar para morrer e qual a maneira mais simples de se realizar o phowa?
Sogyal Rinpoche:
Outro ponto essencial é unir a sua mente com a mente iluminada dos budas – é a prática mais importante nesse momento, e é a que eu vou expor agora. Phowa, em tibetano, quer dizer “transferência da consciência”. A prática do phowa é mais poderosa e valiosa no momento da morte de todas que eu já encontrei. Eu vejo um grande número de pessoas praticando-a com entusiasmo durante a vida. E gostaria de enfatizar que qualquer um pode fazer essa prática. Ela é simples, mas é a prática mais essencial que podemos fazer para nos prepararmos para nossa própria morte, e é também a prática principal que eu ensino aos meus alunos para ajudarem os seus amigos e parentes que estejam morrendo.
Bodisatva:
O senhor poderia descrevê-la?
Sogyal Rinpoche:
Sim. No céu à sua frente, você invoca a corporificação de qualquer verdade em que você crê sob a forma de uma luz radiante. Escolha qualquer ser divino ou santo de quem você se sinta próximo: para os cristãos pode ser Deus ou Cristo, para os budistas pode ser Amitaba, que é o Buda de luz ilimitada e a deidade mais associada com o momento da morte. Se você não se sente conectado com nenhuma figura em especial, simplesmente imagine uma forma em pura luz dourada no céu diante de você. O ponto importante é que considere que o ser que você está visualizando ou que sente presente, seja a corporificação da verdade, sabedoria e da compaixão de todos os budas, mestres, santos e seres iluminados. Não se preocupe se você não conseguir visualizá- los claramente; apenas sinta-os em seu coração, preencha o coração com a sua presença e tenha confiança de que eles estão ali. Na segunda parte dessa prática, foque sua mente, seu coração e sua alma nessa presença que você invocou. Reze a ela que por meio de suas bênçãos, graça e orientação, por meio do poder da luz que flui dela para você, que todo o carma negativo dos seus pecados, emoções destrutivas e bloqueios sejam purificados e removidos. Peça para ser perdoado por todo o dano que possa ter pensado ou causado. E que possa realizar essa prática profunda de phowa, da transferência de consciência, e que possa morrer de uma forma boa e pacífica. E por meio do triunfo de sua morte, que você seja capaz de beneficiar todos os seres, vivos ou mortos. Essa é a oração. Na terceira parte, você imagina que a presença de luz que você invocou ficou tão comovida com sua oração sincera que responderá com um sorriso amoroso e emanará compaixão e amor na forma de raios de luz que saem do seu coração. À medida que esses raios de luz tocam e penetram você, eles eliminam todo o seu carma negativo, as suas emoções negativas que são a causa do seu sofrimento. Você vê e sente que está completamente imerso em luz e amor. Em quarto lugar, você sente nesse momento que está completamente purificado e curado pela luz que fluiu daquela presença. Considere agora que seu próprio corpo, criado pelo carma, se dissolve em luz. Esse corpo de luz que você agora é voa até o céu e se funde inseparavelmente com a presença bem aventurada daquela luz. Permaneça nesse estado de união com a presença pelo maior tempo possível.
Bodisatva:
Como podemos fazer o phowa para quem está morrendo?
Sogyal Rinpoche:
O princípio e a sequência dessa prática para ajudar alguém que morre são exatamente os mesmos. A única diferença é que você visualiza o Buda ou o ser espiritual acima da cabeça de quem está morrendo. Você imagina que raios de luz emanam em direção a essa pessoa e que purificam todo o ser dela. Aí a pessoa se dissolve em luz e se funde nessa presença espiritual. Você pode fazer essa prática durante a doença de um ente querido e, particularmente mais importante, quando a pessoa estiver dando o seu último suspiro, no momento exato da morte ou imediatamente após a respiração ter parado, antes que alguém toque o corpo, antes dele ser tocado ou perturbado de qualquer forma. Se a pessoa que está morrendo sabe que você está fazendo essa prática para ela e sabe qual é a prática, isso é uma grande fonte de inspiração e de conforto.
Bodisatva:
E o que não deve ser feito quando nos preparamos para a morte?
Sogyal Rinpoche:
O grande mestre Dzogchen Dodrubchen Jigme Tenpe Nyima, que foi mestre do meu mestre, deu o seguinte ensinamento: “Não se sinta nervoso ou apreensivo a respeito da morte, ao contrário, tente elevar o seu espírito e cultivar um sentimento de clara alegria trazendo à mente todas as coisas positivas e virtuosas que você fez no passado. E sem sentir qualquer traço de orgulho ou arrogância, celebre as suas realizações uma por uma”. O principal é o seguinte: no momento da morte, abra mão de apego e aversão. Mantenha coração e mente puros. E se você é um praticante espiritual, se reconheceu a natureza da mente e praticou em sua vida, no momento da morte, lembre- se da luminosidade básica e da clara luz surgindo. Na verdade, quando um grande praticante morre é isso que se diz a ele. Para os meus alunos que estão no momento da morte, é esse o conselho que eu dou: lembrem- se da natureza da mente, da clara luz. Fiz um dvd sobre isso, que também pode ser mostrado para o praticante que está próximo do processo de morrer. É como se eu estivesse ao seu lado, presente. Pensem em mim e eu estarei ali.
Sogyal Rinpoche – O mestre que nos ensina a viver e a morrer - Bodisatva
Por Liane Alves
Muito interessante. Eu às vezes me sinto meio peixe fora d'água por gostaria de conversar mais sobre a morte e acho que o assunto é incômodo.
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