domingo, 25 de novembro de 2012

Livre e Relaxado

Lama Guendun Rinpoche

Aqui, a busca interior está na hora do recreio. Não tem Mercúrio, só Vênus. Nem prosa, só poesia. Nem intelecto, só coração. 
E tome poesia...


"A felicidade não se consegue
com grandes sacrifícios e força de vontade;
já está presente, no relaxar aberto e no soltar.

Não te esforces,
não há nada que fazer ou desfazer.
Tudo o que aparece momentaneamente no corpo-mente
não tem nenhuma importância,
seja o que for tem pouca realidade.
Por que se identificar com ele e depois apegar-se?
Por que emitir juízos sobre isso e sobre nós?

É muito melhor deixar
simplesmente que todo jogo ocorra por si mesmo,
surgindo e recuando com as ondas
-sem alterar nem manipular nada-
e observar como tudo se desvanece e
reaparece magicamente, uma e outra vez,
eternamente.

É a nossa busca de felicidade
o único que nos impede vê-la.
É como perseguir um arco-íris de vivas cores
que não alcanças jamais,
ou como um cachorro tentando pegar o próprio rabo.

Ainda que a paz e a felicidade não existam
realmente como uma coisa ou como um lugar,
estão sempre disponíveis
e te acompanham a cada instante.

Não creias na realidade
das experiências boas e más;
pois são tão efêmeras como o bom tempo e o mau tempo,
como os arco-íris no céu.

Desejando compreender o incompreensível,
te esgotas em vão.
No instante que abres e relaxas
esse apertado punho do aferramento,
aí está o espaço infinito, aberto, sedutor e confortável.

Sirva-te desta espacialidade,
desta liberdade e tranquilidade natural.
Não busques mais.
Não te adentres na emaranhada selva
seguindo o rastro do grande elefante desperto,
pois já ele está em casa descansando suavemente
em frente ao teu próprio lugar.

Nada que fazer ou desfazer,
nada que forçar,
nada que desejar,
nada falta.

Ah, isto! 
Maravilhoso!
Tudo sucede por si mesmo".



LIVRE E RELAXADO
UM CANTO VAJRA ESPONTÂNEO
pelo venerável Lama Guendun Rimpochê
Gendun Rimpochê é um eminente lama kagiu, abade e mestre de retiros no Monastério Dakpo Kagiu Ling em Dordonha, França, de onde se traduziu do tibetano este poema.

domingo, 18 de novembro de 2012

A Realidade e o Fantástico

Cada vez mais pessoas estão se tocando com os tempos curiosos em que estamos vivendo. Há uma sutileza no ar mostrando que nossas certezas estão se esvaindo a partir do que a realidade gradualmente nos mostra. Uma realidade impessoal que não afaga as nossas crenças, posições e dogmas, e não dá tréguas ao nosso jeitão enviesado, simplista e preconceituoso de ver o mundo. A razão disso tudo é que há um pensar inadequado sobre o que se apresenta à nossa percepção.
A chamada ciência européia, que em 1815 dizia que “nada no mundo tem a velocidade maior que a de um cavalo”, já em 1850 teve que aceitar a velocidade da luz. Einstein então definiu a velocidade da luz como um limite universal, mas há uns tempos atrás o CERN, organização européia para a pesquisa nuclear afirmou que experiências feitas com neutrinos (sub partículas) indicam que essas partículas desobedientes superaram esse limite. Quer saber o que mais os novos cientistas estão dizendo? Que isso permitiria enviar mensagens e informações para o passado. Pode isso?  Na verdade os estudiosos já  perceberam que logo após o Big Bang, a velocidade de expansão do Universo já teria sido maior que a da luz. Me perdoe o Einstein, mas ele errou? Enfim, um imbroglio. O universo está brincando com a gente, pô!
Para aumentar a insegurança intelectual, fruto desse “pensar linear” ocidental, surgiram atualmente mais contradições ainda. A velocidade de expansão do universo não está obedecendo ao combinado, devido a uma tal matéria escura que apareceu sem avisar, que além de ser absurdamente estranha e não detectável pela ciência, a não ser pelos efeitos que causa, é além de tudo irmã da energia escura, mais estranha ainda. É só estranheza. Antes não era assim...
É a chamada sinuca de bico. Já não bastasse o eletro-magnetismo e a gravidade que os físicos e outros cientistas só conseguem quantificar e aproveitar mas  nunca entenderam direito, a Física quântica, com seus spin e números quânticos de estranheza, tem o desplante de afirmar (e de provar, o que é pior) que “um elétron passa por dois lugares diferentes ao mesmo tempo”. Isso já é demais! Estava certa a Igreja de mandar para a fogueira quem dizia que a terra não era o centro do universo. Aboliram isso. Estão vendo no que deu?
A verdade é que a realidade não dá a menor bola para a ciência, e esta tem que ponderar o que está errado com ela, ciência. Já que pensar é de graça, vamos meter a nossa colher nesse angú e dar a nossa opinião: Seria a nossa concepção do mundo e a forma de pensar que está errada? Será que antes de conceituar a priori essa coisa chamada Realidade, devemos é permitir que ela atinja diretamente os nossos sentidos sem tentar agarrá-la com os conceitos e filtros prévios para que ela então se mostre na sua inteireza? Não é fàcil para um cientista, mas qualquer buscador de uma tradição autêntica sabe como fazer isso. O ser humano em todas as suas atividades, talvez por não se deter sobre a natureza dessa sua aberração mental chamada ego, começa já formando uma opinião sobre um fato, e depois inicia o processo de juntar as informações sobre o fato, somente para filtrar intelectualmente quais as informações provam a veracidade da opinião prévia que já tinha formado. Não é muito diferente da inteligência que orientou a Inquisição. Só é mais sofisticada, já que o intelecto é uma prostituta que se vende a qualquer patrão. Vimos isso todo o tempo na história da humanidade inteira.
Mas o preconceito científico assentado no ego arrogante e dogmático dos homens de ciência é somente um dos problemas, e talvez o menor. Há também o pano de fundo da árida visão cartesiana atual do mundo, orientada por uma lógica ultrapassada, fixa e mutuamente exclusiva do “ou é isso, ou aquilo” onde não há espaço para uma abordagem “é isso e aquilo”, a exemplo da tradição budista, xamânica e outras, sem fronteiras definidas, onde coisas se transmutam em outras sem pedir licença à ciência. Essa seria a abordagem correta do pensar, onde a própria Ciência tem ligação com A Consciência.
A matéria está cada vez mais mostrando que há segredos mais fantásticos que a imaginação mais tresloucada dos contos de ficção científica possa conceber, e esse pensar é que de forma crescente está batendo impaciente às porta da ciência moderna com nomes bizarros: singularidade, buracos negros e brancos, horizonte de eventos, anti-matéria, dobras espaciais, buracos de minhoca, mundos paralelos, e por aí afora.
Há mais de cinquenta anos, em 1960, um livro corajoso começou a reintroduzir o insólito na nossa paisagem intelectual, batizando-o de Realismo Fantástico, e acenando com uma outra forma de pensar e encarar o mundo, mais para a abordagem Zen do que para o dogmatismo da Academia. Ele acenava que a realidade é muito mais fantástica que a fantasia, e previu o que estamos vendo acontecer nas ciências. Vamos a ele: 

"Repito: O Fantástico, a nossos olhos, não é o imaginário. Mas uma imaginação poderosamente aplicada ao estudo da realidade descobre que é muito tênue a fronteira entre o maravilhoso e o positivo, ou, se preferem, entre o universo visível e o universo invisível. Existe talvez um ou vários universos paralelos ao nosso. Creio que não teríamos empreendido esta tarefa se, no decorrer da nossa vida, não tivesse acontecido sentirmo-nos, realmente, fisicamente em contato com outro mundo. 
O antropólogo americano Loren Eiseley, cuja forma de pensar se aproxima da nossa, conta uma bela história que exprime bem o que pretendo dizer. 
"Descobrir outro mundo, diz ele, não é apenas um fato imaginário. Pode acontecer aos homens. Aos animais também. 
Por vezes, as fronteiras resvalam ou interpenetram-se : basta estar presente nesse momento. Vi o fato acontecer a um corvo. 
Esse corvo é meu vizinho: nunca lhe fiz mal algum, mas ele tem o cuidado de se conservar no cimo das árvores, de voar alto e de evitar a humanidade. O seu mundo principia onde a minha vista acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam mergulhados num nevoeiro extraordinariamente espesso, e eu me dirigia às apalpadelas para a estação. Bruscamente, à altura dos meus olhos, surgiram duas asas negras, imensas, precedidas por um bico gigantesco, e tudo isso passou como um raio, soltando um grito de terror tal que eu faço votos para que nunca mais ouça coisa semelhante. Esse grito perseguiu-me durante toda a tarde. Cheguei a consultar o espelho, perguntando a mim próprio o que teria eu de tão revoltante ... 
Acabei por perceber. A fronteira entre os nossos dois mundos resvalara, devido ao nevoeiro. Aquele corvo, que supunha voar à altitude habitual, vira de súbito um espetáculo espantoso, contrário, para ele, às leis da natureza. Vira um homem caminhar no espaço, bem no centro do mundo dos corvos. Deparara com a manifestação de estranheza mais completa que um corvo pode conceber; um homem voador ... 
Agora, quando me vê, lá do alto, solta pequenos gritos, e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo universo foi abalado. Já não é, nunca mais será como os outros corvos ..."

Esse livro não é um romance, embora a intenção seja romanesca. Não faz parte da ficção científica, embora nele se deparem mitos ,que sustentam esse gênero. Não é um conjunto de fatos estranhos, embora o Anjo do Bizarro nele se sinta à vontade. Também não é uma contribuição científica, o veículo de um ensino desconhecido, um testemunho, um documentário, ou uma efabulação. É a narrativa, por vezes romanceada e por vezes exata de uma primeira viagem pelos domínios do conhecimento ainda quase por explorar. Como nos diários de bordo dos navegadores do Renascimento, o imaginário e o real, a extrapolação audaciosa e a visão exata confundem-se. É que não tivemos nem o tempo nem os meios de aprofundar completamente a exploração. Podemos apenas sugerir hipóteses e indicar as vias de comunicação entre esses diversos domínios que ainda são, por agora, terrenos proibidos. Sobre esses terrenos proibidos apenas fizemos pequenas paradas. Quando tiverem sido mais bem explorados, sem dúvida se verificará que muitas das nossas suposições eram delirantes, como os relatos de Marco Polo. É uma eventualidade que aceitamos calmamente. "Havia uma quantidade de disparates no livro". Eis o que dirão. Mas se este livro provocar a curiosidade de aprofundar o assunto, o nosso fim terá sido atingido. 
Onde estamos nós atualmente? Abriram-se portas em quase todos os edifícios científicos, mas o edifício da física de hoje em diante quase que não tem paredes: é uma catedral cheia de vitrais onde se refletem os clarões de outro mundo, infinitamente próximo. 
A matéria revelou-se tão rica, se não mais rica em possibilidades do que o espírito. Ela contém uma energia incalculável é suscetível de transformações infinitas, tem recursos insuspeitáveis, O termo "materialista", na acepção que lhe dava o século XIX, perdeu todo o sentido, da mesma forma que o termo "racionalista". 
A lógica do "bom senso" já não existe. Na física atual, uma proposição pode ser simultaneamente verdadeira e falsa. A X B já não é igual a B X A. Uma mesma entidade pode ser ao mesmo tempo contínua e descontínua. Já não nos poderíamos referir à física para condenar tal ou tal aspecto do possível 
Nota: Um dos sinais mais espantosos da abertura que se produz no domínio da física é a introdução daquilo que se chama "o número quântico de estranheza". Eis, por alto, de que se trata. No princípio do século XIX, pensava-se ingenuamente que dois números, no máximo três, seriam suficientes para definir uma partícula de matéria. Esse número seria a sua massa, a sua carga elétrica e o seu momento magnético. A verdade estava longe de ser tão simples. Para descrever completamente uma partícula foi necessário acrescentar uma grandeza intraduzível em palavras e que se chamava "spin". A princípio, julgou-se que essa grandeza correspondia a um período da rotação da partícula sobre si mesma, qualquer coisa que para o planeta Terra corresponder!a ao período de vinte e quatro horas, regulando a alternância dos dias e das noites. 
Chegou-se à conclusão de que nenhuma explicação simplista deste gênero poderia manter-se em pé. O spin era simplesmente o spin, uma quantidade de energia ligada à partícula, apresentando-se matematicamente como uma rotação sem que gire, seja o que for, na partícula. (NR. - Uma torção do nada, como já disse alguém, que não me lembro).
Profundos trabalhos, devidos sobretudo ao Professor Louis de Broglie, conseguiram explicar apenas parcialmente o mistério do spin. Mas, bruscamente, descobriu-se que entre as três partículas conhecidas: prótons, elétrons, nêutrons (e as suas imagens no espelho, antipróton, pósitron, antinêutron), existia uma boa trintena de outras partículas. 
Os raios cósmicos, esses grandes aceleradores, produziam-nas em grandes quantidades. Ora, para descrever essas partículas, os quatro números habituais, massa, carga, momento magnético, spin, já não eram suficientes. Era necessário criar um quinto número, talvez um sexto, e assim indefinidamente. E foi de uma forma absolutamente natural que os físicos chamaram a essas novas grandezas "números quânticos de estranheza". Esta saudação ao anjo do Bizarro tem qualquer coisa de imensamente poético. Como muitas outras expressões da física moderna: "Luz Interdita", "Algures Absoluto", o "número quântico de estranheza" prolonga-se para além da física, e tem ligações com as profundezas do espírito humano. 
Peguem uma folha de papel. Façam-lhe dois buracos pouco distanciados. Aos olhos do senso comum, - é evidente que um objeto suficientemente pequeno para passar através desses buracos passará quer por um, quer por outro. Aos olhos do senso comum, um eléctron é um objeto. Possui um peso definido, produz um clarão luminoso quando impressiona uma tela de televisão, um choque quando atinge um microfone. Temos portanto o nosso objeto suficientemente pequeno para passar por um dos dois buracos. Ora, a observação pelo microscópio eletrônico mostra que o eléctron passou simultaneamente pelos dois buracos. Como?! Se passou por um, não pode ter passado ao mesmo tempo pelo outro! Mas a verdade é que ele passou por um e por outro. É absurdo, mas é experimental. 
Das tentativas de explicações nasceram diversas doutrinas, em particular a mecânica ondulatória. Mas a mecânica ondulatória, entretanto, não consegue explicar totalmente um fato semelhante, que se mantém para além das nossas possibilidades de compreensão, a qual só poderá funcionar através de um sim ou um não, A ou B. Era a própria estrutura do nosso entendimento que seria necessário modificar, para que se pudesse compreender. A nossa filosofia exige tese e antítese. É preciso acreditar que, na filosofia do elétron, tese e antítese são simultaneamente autênticas. Parecerá absurdo o que dizemos? O elétron parece obedecer a leis, e a televisão, por exemplo, é uma realidade. 
O eléctron existe ou não? Aquilo que a natureza chama existir não tem existência a nossos olhos. O eléctron faz parte do ser ou do nada? Eis uma pergunta completamente vazia de sentido. Assim desaparecem, devido à ação enérgica do conhecimento, os nossos habituais métodos de pensamento e as filosofias literárias, provenientes de uma visão caduca dos fatos. 
A Terra está ligada ao Universo, o homem não está em contato apenas com o planeta em que habita. Os raios cósmicos, a radioastronomia, os trabalhos de física teórica revelam contatos com a totalidade do cosmo. Já não vivemos num mundo fechado: um espírito verdadeiramente testemunha da sua época não o poderia ignorar. Nessas condições, de que forma pode o pensamento no plano social, por exemplo, continuar preocupado com problemas que nem sequer são planetários, mas estritamente regionais, provinciais? E como pode a nossa psicologia, tal como se exprime no romance, manter-se tão fechada, reduzida aos movimentos infraconscientes da sensualidade e do sentimentalismo? Enquanto milhares de seres civilizados abrem livros, vão ao cinema ou ao teatro para saber de que maneira Françoise se sentirá impressionada por René e como, por outro lado, odeia a amante do pai e se tornará lésbica por surda vingança, vários investigadores, que fazem com que os números entoem uma música celeste, perguntam a si próprios se o espaço se contrai ou não em redor de um veículo espacial. Nesse caso todo o Universo se tornaria acessível: haveria possibilidades, durante o espaço de uma vida humana, de atingir a estrela mais longínqua. Se tais equações fossem confirmadas, o pensamento humano seria alterado. Se o homem não está limitado a esta Terra, novas interrogações terão de fazer-se a respeito do sentido profundo da iniciação e dos eventuais contatos com inteligências do Exterior. 
Em que ponto estamos ainda? Em matéria de pesquisa sobre as estruturas do espaço e do tempo, as nossas noções de passado e de futuro já não servem. Ao nível da partícula, o tempo circula simultaneamente nos dois sentidos: futuro e passado. A uma velocidade extrema, limite da velocidade da luz, o que é o tempo? 
Estamos em Londres, em outubro de 1944. Um foguete V2, voando a 5000 quilômetros por hora, está sobre a cidade. Ele vai cair. Mas esse "vai" se aplica a quê? Para os habitantes do prédio que será destruído dentro de instantes, e que apenas possuem olhos e ouvidos, o V2 vai cair. Mas para o operador de radar, que se serve de ondas que se propulsionam a 300 mil quilômetros por segundo (velocidade em relação à qual o foguete é uma lesma), a trajetória da bomba já está fixada. Ele observa: mas não pode fazer coisa alguma. Na escala humana, já nada pode interceptar o instrumento de morte, nem evitar seja o que for, Para o operador o foguete já caiu. À velocidade do radar, praticamente o tempo não corre. Os habitantes do prédio vão morrer. No super-olho do radar já estão mortos. 
Outro exemplo: encontram-se nos raios cósmicos, quando estes atingem a superfície da Terra, algumas partículas, os mésons mu, cuja vida sobre o globo não ultrapassa um milionésimo de segundo. Ao fim desse milionésimo de segundo destroem-se a si próprios por meio da radioatividade. Ora, essas partículas nasceram a 30 quilômetros no céu, região onde a atmosfera do nosso planeta começa a ser densa. Para transpor esses 30 quilômetros, elas já ultrapassaram o seu tempo de vida, considerado segundo a nossa escala. Mas o seu tempo não é o nosso. Elas viveram essa viagem na eternidade e apenas entraram no tempo depois de perdida a sua energia, ao chegar ao nível do mar. Prevê-se a construção de aparelhos nos quais se produziria o mesmo efeito. Criar-se-ia desta forma uma espécie de gavetas do tempo, onde estariam arrumados objetos de fraca duração, conservados na quarta dimensão. Essa gaveta seria um anel oco de vidro, colocado num enorme campo de energia e onde as partículas rodariam com tal velocidade que para elas o tempo teria praticamente deixado de correr . Desta forma, uma vida de um milésimo de segundo poderia ser mantida e observada durante minutos ou horas ... 
"Não se deve acreditar que o tempo decorrido regressa ao nada: o tempo é uno e eterno, o passado, o presente e o futuro não passam de aspectos diferentes - gravuras diferentes se se preferir - de um registro contínuo e invariável da existência perpétua. " Para os discípulos atuais de Einstein, apenas existiria realmente um eterno presente. Era o que os antigos místicos diziam. Se o futuro já existe, a preconização é um fato. Toda a aventura do conhecimento antecipado é orientada no sentido de uma descrição das leis da física, mas igualmente da biologia e da psicologia no contínuo de quatro dimensões, quer dizer, no eterno presente. Passado, presente e futuro "são". Talvez seja apenas a consciência que se desloca. Pela primeira vez a Consciência é admitida sem discussão nas equações de física teórica. 
Neste eterno presente, a matéria surge como um delgado fio estendido entre o passado e o futuro. Ao longo desse fio desliza a consciência humana. Por que meios é ela capaz de modificar as tensões desse fio, de forma a controlar os acontecimentos? 
Saberemos um dia e então a psicologia fará parte da física. 
A liberdade é provavelmente conciliável com este eterno presente. "O viajante que sobe o Sena de barco sabe antecipadamente as pontes que encontrará. Nem por isso é menos senhor das suas ações, nem menos capaz de prever o que poderá acontecer inopinadamente." Liberdade de vir a ser, no centro de uma eternidade que é. Visão dupla, admirável visão do destino humano ligado à totalidade do Universo! 
Se eu pudesse recomeçar a minha vida, com certeza não escolheria ser escritor e passar os meus dias numa sociedade retardatária na qual a aventura dormita debaixo das camas, como um cão. Ser-me-ia necessária uma aventura-leão. Seria físico teórico, para viver no âmago ardente do verdadeiro romanesco. 
O moderno mundo da física desmente terminantemente as filosofias do desespero e do absurdo. Ciência sem consciência não passa de uma ruína da alma. Mas consciência sem ciência é ruína idêntica. Aquelas filosofias que atravessaram a Europa no século XX eram fantasmas do século XIX, vestidos à moda atual. 
Um conhecimento real, objetivo, de fato técnico e científico, que cedo ou tarde arrasta o fato social, ensina-nos que há uma direção nítida na história humana, um acréscimo do poder do homem, uma subida, do espírito geral, uma enorme forja das massas que as transforma em consciência ativa, o acesso a uma civilização na qual a vida será tão superior à nossa como a nossa em relação à dos animais. Os filósofos literários disseram-nos que o homem é incapaz de compreender o mundo. Já André Maurois, em Les Nouveaux Discours du Docteur O'Grady, escrevia: "Tem de admitir, no entanto, doutor, que o homem do século XIX podia acreditar que, um dia, a ciência explicaria o mundo. Renan, Berthelot, Taine, também esperavam o mesmo, no princípio da sua vida. O homem do século XX já não tem tais esperanças. Sabe que as descobertas só fazem recuar o mistério. Quanto ao progresso, constatamos que os direitos do homem só provocaram fome, terror, desordem, tortura e confusão de espírito. Que esperança resta? Para que vive, doutor?". Ora, o problema já não se colocava desta forma. Sem que os faladores se apercebessem, o círculo fechava-se à volta do mistério e o progresso incriminado abria as portas do céu. Já não é Berthelot ou Taine a fazer previsões a respeito do futuro da humanidade, mas sim homens como Teilhard de Chardin. De um recente confronto entre cientistas de diversas disciplinas sobressai a seguinte ideia: talvez um dia os derradeiros segredos das partículas elementares nos venham a ser revelados pelo comportamento profundo do cérebro, pois ele é o resultado e a conclusão das mais complexas reações na nossa região do Universo, e talvez contenha em si próprio as leis mais íntimas dessa região. 
O mundo não é absurdo e o espírito não é de forma alguma inapto para compreendê-lo. Antes pelo contrário, pode ser que o espírito humano já tenha compreendido o mundo, mas ainda não o saiba ...



domingo, 11 de novembro de 2012

A Loucura Controlada (Leitura Transversal)

 Como dissemos no começo da postagem O Sonhar, a Leitura Transversal é um "ler pelo avesso", ou apenas ler um só tema dentro de uma obra através das citações ao tema. Vamos fazer o mesmo com o tema A Loucura Controlada, um tema caro aos toltecas do Antigo México e Carlos Castaneda na busca da Liberdade Total.
A Loucura Controlada é um aspecto da EspreitaPara espreitar é preciso ter um propósito, ser impecável, sair da auto-importância, banir hábitos e rotinas e praticar a loucura controlada, que é fingir-se imerso na ação, mas sem se identificar com ela, passar despercebido.
Vamos às citações da obra:

“- É possível insistir, insistir realmente, mesmo sabendo que o que se está fazendo é inútil - disse ele, sorrindo. - Mas primeiro temos de saber que nossos atos são inúteis e, no entanto, temos de proceder como se não soubéssemos. É esta a loucura controlada de um feiticeiro.”
Uma Estranha Realidade, pág. 75

“- Será que você me conta mais a respeito de sua loucura controlada?
- O que é que você quer saber a respeito?
- Diga-me, por favor, Dom Juan, o que é exatamente a loucura controlada?
Dom Juan riu à grande e provocou um estalo, dando uma palmada em sua coxa.
- Isto é loucura controlada! - falou, e tornou a dar uma palmada na coxa.
- O que quer dizer?
- Estou contente que você afinal me pergunte acerca de minha loucura controlada, depois de tantos anos, e no entanto não teria a mínima importância para mim, se você nunca perguntasse. E no entanto resolvi ficar feliz, como se me importasse, porque você perguntou, como se importasse que eu ligasse. Isso é loucura controlada!
Nós dois rimos muito. Abracei-o. Achei a explicação dele uma delícia, embora não a entendesse muito bem.”
Uma Estranha Realidade, pág. 77

“- Com quem você pratica a sua loucura controlada, Dom Juan? - perguntei, depois de um longo silêncio. Ele riu.
- Com todo mundo!
- Então, quando é que você resolve praticá-la?
- Cada vez que eu ajo.
Achei necessário recapitular, nesse ponto, e perguntei-lhe se a loucura controlada significava que os atos dele nunca eram sinceros, e apenas os atos de um ator.
- Meus atos são sinceros - disse ele - mas são apenas os atos de um ator.
- Então, tudo o que você faz deve ser loucura controlada! - falei, realmente surpreendido.
- Sim, tudo.
- Mas isso não pode ser verdade - protestei - não acredito que todos seus atos sejam só loucura controlada.
- Por que não? - respondeu ele, com um ar misterioso.
- Isso significaria que nada lhe importa e você não liga realmente para nada ou ninguém. Veja o meu caso, por exemplo. Quer dizer que não se importa se eu me tornar um homem de conhecimento, se eu viver ou morrer, ou fizer qualquer coisa?
- É verdade! Não me importo. Você é como Lúcio, ou qualquer outra pessoa em minha vida, minha loucura controlada.”
Uma Estranha Realidade, pág. 77

“- Estou com a impressão de que não estamos falando sobre a mesma coisa. Eu não devia ter usado o meu caso como exemplo. O que eu queria dizer era que devia haver alguma coisa no mundo com a qual você se importe e que não seja loucura controlada. Não creio que seja possível a gente continuar a viver se nada realmente nos importa.
- Isso se aplica a você - respondeu. - As coisas importam a você. Perguntou-me acerca de minha loucura controlada e eu lhe disse que tudo o que faço com relação a mim e meus semelhante é loucura, pois nada importa.
- O que eu digo, Dom Juan, é que, se nada lhe importa, como é que você pode continuar a viver?
Riu depois de um momento, em que parecia estar resolvendo se devia ou não responder-me; levantou-se e foi para os fundos da casa. Acompanhei-o.
- Espere, espere, Dom Juan - falei. - Quero mesmo saber; você tem de me explicar o que quer dizer.
- Talvez não seja possível explicar - disse ele. - Certas coisas em sua vida lhe importam porque são importantes; seus atos certamente são importantes para você, mas, para mim, não há mais nenhuma coisa importante, nem os meus atos nem os de meus semelhantes. Mas continuo a viver porque tenho minha vontade. Porque temperei minha vontade em toda minha vida, até ela se tornar limpa e sadia, e agora não mais me importa o fato de nada importar. Minha vontade controla a loucura de minha vida.
Agachou-se e passou os dedos por umas ervas que tinha posto a secar ao Sol num pedaço de pano.
Eu estava confuso. Jamais poderia ter antecipado o rumo que minha pergunta tomaria. Depois de algum tempo, pensei num bom argumento. Disse-lhe que, em minha opinião, alguns dos atos de meus semelhantes tinham a maior importância. Observei que a guerra nuclear era positivamente o exemplo mais dramático de um desses atos. Disse que, para mim, a destruição da vida na face da terra era um ato de uma enormidade arrasante.
- Você crê nisso porque está pensando. Está pensando na vida - disse Dom Juan, com um brilho nos olhos. - Não está vendo.
- Eu sentiria outra coisa se estivesse vendo? - perguntei.
- Quando o homem aprender a ver, ele se encontra sozinho no mundo, apenas com a loucura - disse Dom Juan, misteriosamente. Parou um momento e olhou para mim como se quisesse avaliar o efeito de suas palavras. - Seus atos, bem como os atos de seus semelhantes em geral, parecem-lhe importantes porque você aprendeu a pensar que são importantes.
Ele usou a palavra "aprendeu" com uma entonação tão especial que me levou a perguntar o que ele queria dizer com aquilo. Parou de mexer nas plantas e olhou para mim.
- Aprendemos a pensar sobre tudo - disse ele - e depois exercitamos nossos olhos para olharem como pensamos a respeito das coisas que olhamos. Olhamos para nós mesmos já pensando que somos importantes. E, por isso, temos de sentir-nos importantes!
Mas quando o homem aprende a ver, entende que não pode mais pensar a respeito das coisas que ele olha, e se não pode mais pensar sobre as coisas que olha, tudo fica sem importância.”
Uma Estranha Realidade, pág. 78

“- Aquilo que você me disse hoje à tarde sobre a loucura controlada me perturbou muito. Não consigo compreender o que você queria dizer.
- Claro que não consegue compreender - falou. - Você está tentando pensar a respeito, e o que eu disse não se coaduna com seus pensamentos.
- Estou tentando pensar a respeito, porque esse é o único meio pelo qual eu, pessoalmente, consigo entender alguma coisa. Por exemplo, Dom Juan, quer dizer que uma vez que o homem aprenda a ver, tudo no mundo passa a ser sem valor?
- Eu não disse sem valor. Falei sem importância. Tudo é igual, e dessa forma sem importância. Por exemplo, não há meio de eu dizer que meus atos sejam mais importantes do que os seus, ou que uma coisa seja mais essencial do que outra; e, portanto, todas as coisas são iguais, e sendo iguais são sem importância.
 Perguntei-lhe se suas declarações eram uma afirmação de que o que ele chamara de "ver" era realmente um "meio melhor" do que apenas "olhar para as coisas". Ele disse que os olhos do homem podiam desempenhar ambas as funções, mas que nenhuma das duas era melhor do que a outra; no entanto, treinar os olhos apenas para olhar, para ele, era um desperdício desnecessário.
- Por exemplo, precisamos olhar com nossos olhos para rir - disse ele - porque só quando olhamos para as coisas é que pegamos o lado engraçado do mundo. Por outro lado, quando os nossos olhos vêem, tudo é tão igual que nada é engraçado.
- Quer dizer, Dom Juan, que o homem que vê nunca pode rir?
Ficou calado por algum tempo.
- Talvez haja homens de conhecimento que nunca riem falou. - Mas não conheço nenhum. Aqueles que eu conheço vêem e olham, de modo que riem.
- Um homem de conhecimento também pode chorar?
- Suponho que sim. Nossos olhos olham, de modo que podemos rir, ou chorar ou regozijar-nos, ou ficar tristes, ou felizes. Pessoalmente não gosto de ficar triste, de modo que sempre que presencio alguma coisa que normalmente me entristeceria, limito-me a mudar meus olhos e vejo a coisa, em vez de simplesmente olhar para ela. Mas quando encontro alguma coisa engraçada, eu olho e rio.”
Uma Estranha Realidade, pág. 80

“- Há muitos homens de conhecimento que fazem isso - falou. - Um dia eles podem simplesmente desaparecer. As pessoas podem pensar que eles caíram numa emboscada e foram mortos por causa de seus atos. Preferem morrer porque não se importam. Por outro lado, prefiro viver e rir, não porque importe, mas porque essa escolha é de minha natureza. O motivo por que digo que prefiro, é que eu vejo, mas não é que prefira viver; minha vontade me faz continuar a viver a despeito de tudo o que eu possa ver. Você não me está entendendo agora por causa de seu hábito de pensar enquanto pensa.
Essa declaração me intrigou muito. Pedi que ele explicasse o que queria dizer. Repetiu a mesma frase várias vezes, como que se dando tempo para arrumá-la em termos diferentes, e depois expôs seu argumento, afirmando que, por "pensar", ele queria dizer a ideia constante que temos de tudo no mundo. Disse que "ver" eliminava esse hábito e até eu aprender a "ver" eu não podia realmente compreender o que ele queria dizer.
- Mas se nada tem importância, Dom Juan, por que importa que eu aprenda a ver?
- Já lhe disse uma vez que nosso destino como homem é aprender, para melhor ou pior - afirmou. - Aprendi a ver e lhe digo que nada realmente importa. Agora é sua vez. Talvez algum dia você aprenda a ver e então saberá se as coisas importam ou não. Para mim nada importa, mas talvez para você tudo importará. Você já devia saber que um homem de conhecimento vive pelos atos, não por pensar nos atos, e não por pensar no que vai pensar depois que acabar de agir. Um homem de conhecimento escolhe um caminho de coração e o segue; e depois olha e se regozija e ri; e então ele vê e sabe. Sabe que sua vida terminará muito depressa; sabe que ele, como todos os outros, não vai a parte alguma; sabe, por que vê, que nada é mais importante do que qualquer outra coisa. Em outras palavras, um homem de conhecimento não tem honra, nem dignidade, nem família, nem nome, nem prática, mas apenas a vida a ser vivida, e, nessas circunstâncias, sua única ligação com seus semelhantes é sua loucura controlada. Assim, o homem de conhecimento se esforça, transpira e bufa; e, se se olhar para ele, parece um homem comum, só que tem que a loucura de sua vida está controlada. Como nada é mais importante do que outra coisa qualquer, um homem de conhecimento escolhe qualquer ato e age como se lhe importasse. Sua loucura controlada o leva a dizer que o que ele faz importa e o faz agir como se importasse, e no entanto ele sabe que não é assim; de modo que, quando pratica seus atos, ele se retira em paz, e quer seus atos sejam bons ou maus, deem certo ou não, isso não o afeta de todo.
"Um homem de conhecimento pode preferir, por outro lado, permanecer totalmente impassível e nunca agir, e comportar-se como se ser impassível realmente lhe importasse; ele também será sincero agindo assim, pois isso também seria sua loucura controlada”.
Uma Estranha Realidade, pág. 82

“- Você pensa em seus atos - falou. - E, portanto, tem de acreditar que seus atos são tão importantes quanto você pensa que são, quando, na realidade, nada do que se faz é importante. Nada! Mas então, se nada importa realmente, conforme você me perguntou, como posso continuar a viver? Seria mais simples morrer; é isso que você diz e acredita, pois está pensando na vida, assim como agora está pensando em como seria ver. Queria que eu o descrevesse para você para poder começar a pensar a respeito, assim como faz com tudo o mais. No caso de ver, contudo, pensar não é a questão, em absoluto, de modo que não lhe posso dizer como é ver. Agora, quer que eu descreva os motivos de minha loucura controlada, e só lhe posso dizer que a loucura controlada é muito parecida com ver: é uma coisa sobre a qual não se pode pensar.
Ele bocejou. Deitou-se de costas e esticou os braços e as pernas. Os ossos dele estalaram.
- Esteve fora muito tempo - disse ele. - Você pensa demais.
Levantou-se e foi para o chaparral espesso ao lado da casa. Alimentei o fogo, para conservar a panela fervendo. Já ia acender um lampião de querosene, mas a penumbra era muito calmante. O fogo do fogão, que dava luz suficiente para eu escrever, também criava uma luminosidade vermelha em volta de mim. Larguei minhas notas no chão e deitei-me. Estava cansado. De toda essa conversa com Dom Juan, a única coisa pungente em meu espírito era que ele não ligava para mim; aquilo me perturbou muito. Durante vários anos, eu depositara confiança completa nele. Se não tivesse essa confiança, eu teria ficado paralisado de medo com a ideia de aprender o conhecimento dele; a premissa em que eu baseara minha confiança era a ideia de que ele me apreciava pessoalmente; na verdade, eu sempre o temera, mas controlava meu medo porque confiava nele. Quando tirou aquela base, fiquei sem nada para me apoiar e senti-me desamparado.”
Uma Estranha Realidade, pág. 83

“Falei a Dom Juan que meu conflito era oriundo das dúvidas suscitadas pelas palavras dele a respeito da loucura controlada.
- Se nada importa realmente - disse eu - ao se tornar um homem de conhecimento, a pessoa se encontrará forçosamente tão vazia quanto meu amigo, e numa situação nada melhor.
- Isso não é verdade - replicou Dom Juan, num tom cortante. - Seu amigo está solitário porque há de morrer sem ver. Em sua vida, apenas envelheceu e agora tem de ter mais pena de si ainda do que antes. Sente que jogou fora 40 anos porque andou atrás de vitórias e só encontrou derrotas. Nunca há de saber que ser vitorioso e ser derrotado são a mesma coisa.
"Então, agora tem medo de mim porque eu lhe disse que você é igual a tudo o mais. Está sendo infantil. Nosso destino como homens é aprender e a gente procura o conhecimento como vai para a guerra; já lhe disse uma centena de vezes. Vai-se ao conhecimento ou à guerra com medo, com respeito, sabendo que se vai à guerra, e com uma confiança absoluta em si mesmo. Deposite sua confiança em si, não em mim”.
"E então você teme o vazio da vida de seu amigo. Mas não existe vazio na vida de um homem de conhecimento, posso garantir-lhe. Tudo está cheio até à borda”.
Dom Juan levantou-se e esticou os braços, como se estivesse tocando em coisas no ar.
"Tudo está cheio até à borda - repetiu ele - e tudo é igual.
Não sou como seu amigo que apenas envelheceu. Quando lhe digo  que nada importa, não o digo do jeito que ele o faz. Para ele, sua luta não valeu a pena porque ele foi vencido; para mim não há vitória, nem derrota, nem vazio. Tudo está cheio até à borda; tudo é igual, e minha luta valeu a pena”.
"A fim de se tornar um homem de conhecimento, a pessoa tem de ser um guerreiro, não uma criança choramingas. E preciso lutar sem desistir, sem reclamar, sem hesitar, até ver, só para compreender então que nada importa.”
Uma Estranha Realidade, pág. 85

“- Você se preocupa demais em gostar das pessoas ou em pensar se gostam de você - falou. - Um homem de conhecimento gosta e pronto. Gosta daquilo ou da pessoa que quer, mas utiliza sua loucura controlada para não se preocupar com isso. O oposto do que você está fazendo agora. Gostar das pessoas ou ser apreciado por elas não é tudo o que se pode fazer, como homem.
. Ficou olhando fixamente para mim, com a cabeça inclinada para um lado.
- Pense nisso - disse ele.
- Há mais uma coisa que desejo perguntar, Dom Juan. Você falou que temos de olhar com nossos olhos para rir, mas acredito que rimos porque pensamos. Veja um cego, ele também ri.
- Não - respondeu. - Os cegos não riem. Seus corpos estremecem um pouco com o riso. Nunca viram a parte engraçada do mundo, e têm de imaginá-la. O riso deles não é uma gargalhada.
Não conversamos mais. Eu tinha uma sensação de bem-estar, de felicidade. Comemos em silêncio; depois, Dom Juan começou a rir. Eu estava usando um galho seco para pôr os legumes na boca.”
Uma Estranha Realidade, pág. 86

“- Como é que um homem de conhecimento pratica a loucura controlada, quando se trata da morte de uma pessoa que ele ama?
Dom Juan foi colhido de surpresa por minha pergunta e olhou para mim de modo estranho.
- Veja seu neto, Lucio, por exemplo - disse eu. – Seus atos seriam loucura controlada, no momento da morte dele?
- Veja meu filho Eulálio, é um exemplo melhor - respondeu Dom Juan, calmamente. - Foi esmagado pelas pedras quando trabalhava na construção da Estrada de Rodagem Pan-Americana. Meus atos para com ele no momento de sua morte foram loucura controlada. Quando cheguei à área das explosões, ele estava quase morto, mas o corpo dele era tão forte que continuava a se mexer e dar pontapés. Fiquei diante dele e disse aos rapazes da turma da estrada para não mexerem mais nele; obedeceram-me e ficaram ali em volta de meu filho, olhando para o corpo estraçalhado. Também fiquei ali, mas não olhei. Desviei os olhos para poder ver sua vida pessoal se desintegrando, expandindo-se incontrolavelmente além de seus limites, como uma neblina de cristais, pois é assim que a vida e a morte se misturam e expandem. Foi o que fiz no momento da morte de meu filho. E só isso que se poderia fazer, e isso é loucura controlada. Se eu tivesse olhado para ele, teria visto que ele ficava imóvel e teria sentido um grito dentro de mim, pois nunca mais havia eu de ver sua bela figura andando pela terra. Em vez disso, eu vi a morte dele, e não houve tristeza, nem sentimento algum. Sua morte foi igual a tudo o mais.
Dom Juan foi calado por algum tempo. Parecia triste, mas depois sorriu e bateu na minha cabeça.
- Por isso você pode dizer que, quando se trata da morte de uma pessoa que eu amo, minha loucura controlada consiste em desviar o olhar.
 Pensei nas pessoas que eu mesmo amo e uma onda de autocomiseração terrivelmente opressiva me envolveu.
- Sorte a sua Dom Juan - falei. - Pode desviar o olhar, mas eu só posso olhar.
Ele achou graça naquilo e riu.
- Sorte, uma bosta! É trabalho duro.”
Uma Estranha Realidade, pág. 87

“- Se entendi corretamente, Dom Juan, os únicos atos na vida de um homem de conhecimento que não são loucura controlada são aqueles que ele pratica com seu aliado ou com Mescalito. Certo?
- Certo - respondeu, rindo. - Meu aliado e Mescalito não estão num plano de igualdade conosco, os seres humanos. Minha loucura controlada só se aplica a mim e aos atos que pratico quando em companhia de meus semelhantes.
- No entanto, é uma possibilidade lógica - falei - pensar que um homem de conhecimento também considera seus atos com seu aliado ou com Mescalito como loucura controlada, não é verdade?
Olhou-me por um momento.
- Você está pensando outra vez - disse ele. - Um homem de conhecimento não pensa e, portanto, não pode encontrar essa possibilidade. Veja meu caso, por exemplo. Digo que minha loucura controlada aplica-se aos atos que pratiquei em companhia de meus semelhantes; digo isso porque eu posso ver meus semelhantes. No entanto, não posso ver através de meu aliado e isso torna a coisa incompreensível para mim; dessa forma, como poderia eu controlar minha loucura se não vejo através dele? Com meu aliado ou com Mescalito sou apenas um homem que sabe ver e que fica confuso com o que vê; um homem que sabe que nunca há de compreender tudo o que o cerca.
"Veja seu caso, por exemplo. A mim não importa que você se torne um homem de conhecimento ou não; no entanto, isso importa a Mescalito. Obviamente, importa a ele, senão não faria tanta coisa para mostrar seu interesse por você. Observo o interesse dele e ajo nesse sentido, no entanto seus motivos me são incompreensíveis."
Uma Estranha Realidade, pág. 88

“- Seja bem-vindo à minha humilde cabana - disse ele, em tom de desculpas, em espanhol.
As palavras dele eram uma expressão cortês que eu já ouvira em várias regiões rurais do México. No entanto, ao pronunciá-las, ele sorriu alegremente, por nenhum motivo aparente, e eu sabia que ele estava pondo em prática a sua loucura controlada. Não se im¬portava a mínima que sua casa fosse uma cabana. Gostei muito de Dom Genaro.”
Uma Estranha Realidade, pág. 90

“Um assunto secundário que surgiu no curso de nossa interação com os guerreiros de Dom Juan foi o da loucura controlada. Dom Juan me deu uma explicação sucinta uma vez quando discutia as duas categorias nas quais todas as mulheres guerreiras eram necessariamente divididas, as sonhadoras e as espreitadoras. Disse que todos os membros do seu grupo sonhavam e espreitavam como ações habituais de suas vidas diárias, mas que as mulheres que formavam o planeta das sonhadoras e o planeta das espreitadoras eram as grandes autoridades nas suas respectivas atividades.
As espreitadoras eram as que recebiam o impacto do mundo diário; as gerentes de negócios, as que lidavam com as pessoas. Tudo que se relacionava ao mundo de assuntos comuns passava por elas. As espreitadoras eram praticantes da loucura controlada, assim como as sonhadoras eram praticantes do sonho. Em outras palavras, a loucura controlada é a base da espreita, e os sonhos são a base do sonhar. Dom Juan disse que, de um modo geral, a maior realização de um guerreiro na segunda atenção era sonhar, e na primeira atenção, espreitar.
Eu tinha compreendido mal o que os guerreiros de Dom Juan tinham feito comigo em nossos primeiros encontros. Tomei as atitudes deles como atos de trapaça - e essa ainda seria minha impressão hoje se não fosse a ideia da loucura controlada. Dom Juan falou que as suas atitudes comigo tinham sido lições de mestre em espreita. Disse-me que a arte da espreita era o que seu benfeitor tinha lhe ensinado antes de qualquer outra coisa. A fim de sobreviver entre os guerreiros do seu benfeitor ele tivera de aprender aquela arte rapidamente. No meu caso, disse, já que eu não tive de me bater por mim mesmo com os seus guerreiros, tive de aprender a sonhar primeiro. Quando chegava o momento adequado, Florinda saía para me guiar nas complexidades de espreitar. Ninguém mais podia falar deliberadamente comigo sobre isso; podiam apenas me dar demonstrações diretas, como fizeram em nossos primeiros encontros.
Dom Juan explicou longamente que Florinda era uma das melhores praticantes da espreita por ter sido treinada em toda a sua complexidade pelo seu benfeitor e suas quatro guerreiras espreitadoras. Florinda foi a primeira guerreira a chegar ao mundo de Dom Juan, e por isso ela era minha guia pessoal- não só na arte da espreita, mas também no mistério da terceira atenção, se eu algum dia chegasse lá. Dom Juan não fez declarações sobre isso. Disse que eu teria de esperar até estar pronto, primeiro para aprender a espreitar e depois para entrar na terceira atenção.
Falou que seu benfeitor tinha concedido tempo e cuidado especiais para ele e seus guerreiros em relação a tudo que pertencia ao aperfeiçoamento da arte de espreitar. Usava técnicas complexas para criar um contexto apropriado para uma contrapartida entre os ditames do regulamento e o comportamento dos guerreiros no seu mundo diário, quando eles interagiam com as pessoas. Acreditava ser essa a forma de convencê-los de que, na ausência da auto-importância, o único modo de um guerreiro lidar com o meio social era em termos de loucura controlada.
Ao longo do desenvolvimento de suas técnicas, o benfeitor de Dom Juan lançava as ações das pessoas e as ações dos guerreiros contra as exigências do regulamento, e então se retirava e deixava o drama natural se desenrolar por si próprio. A loucura das pessoas tomava a frente por algum tempo e arrastava os guerreiros consigo, como parece ser o curso natural das coisas, e só se recompunha no final, com os desígnios mais abrangentes do regulamento.
Dom Juan nos disse que a princípio ele se ressentira do controle do seu benfeitor sobre os participantes. Chegou a dizer isso na cara dele, mas ele não se perturbou. Argumentou que o controle era meramente uma ilusão criada pela Águia. Ele era apenas um guerreiro impecável, e suas ações eram uma humilde tentativa de refletir a Águia.
Dom Juan disse que a força com a qual o seu benfeitor desempenhava seus desígnios originava-se de seu conhecimento de que a Águia é real e final, e que o que as pessoas fazem é de extrema loucura. Os dois juntos deram origem à loucura controlada, que o benfeitor de Dom Juan descrevia como a única ponte entre a loucura das pessoas e a finalidade dos ditames da Águia.”
O Presente da Águia, pág. 169

“Florinda foi a primeira guerreira. Foi seguida de Zoila, Delia e depois Hermelinda. Dom Juan disse que seu benfeitor tinha insistido sem cessar para que eles lidassem com o mundo exclusivamente em termos de loucura controlada. O resultado final foi um grupo estupendo de praticantes, que pensavam e executavam os esquemas mais complexos.
Quando todos tinham adquirido um grau de eficiência na arte de espreita, seu benfeitor achou que era hora de encontrar a mulher nagual para eles. Fiel a seu método de ajudar a todos a ajudarem a si próprios, esperou para trazê-la ao mundo deles quando todos fossem peritos na espreita e quando Dom Juan aprendesse a ver. Embora Dom Juan se queixasse enormemente do tempo desperdiçado na espera, reconheceu que o esforço reunido deles em garanti-la criara um laço mais forte entre todos, revitalizando o compromisso da busca de liberdade.”
O Presente da Águia, pág. 170

“Ela declarou que essas eram as preliminares essenciais da espreita
que todos os membros do seu grupo tinham passado como introdução a exercícios mais apurados da arte. Sem fazer os exercícios preliminares para recuperar os filamentos deixados no mundo, e particularmente para desprezar os que os outros deixaram neles, não há possibilidade de manipular a loucura controlada, pois esses filamentos estranhos são a base da capacidade ilimitada de auto-importância de uma pessoa. Para exercitar a loucura controlada, já que ela não visa a enganar ou punir as pessoas ou se sentir superior a elas, tem-se de ser capaz de rir de si próprio. Florinda disse que um dos resultados de uma recapitulação detalhada é a graça de se ver face a face com a repetição monótona da auto-estima de alguém, que está no cerne de toda a interação humana.
Ela enfatizou que o regulamento definia a espreita e o sonho como artes, portanto, a serem representadas. Disse que a natureza produtora de vida da respiração é também o que dá sua capacidade de limpeza. É essa capacidade que faz da recapitulação uma questão prática.”
O Presente da Águia, pág. 228

“Florinda se impressionava muito com o último princípio. Para ela ele resumia tudo o que ela queria dizer a mim nas suas instruções de última hora.
- Meu benfeitor era o chefe - disse Florinda. - Assim mesmo, olhando para ele ninguém acreditaria. Sempre usava uma de suas guerreiras como fachada, misturando-se livremente entre os doentes, fingindo ser um deles, ou fazendo-se passar por um velho idiota varrendo as folhas secas com uma vassoura improvisada.
Florinda explicou que para aplicar o sétimo princípio da arte de espreitar, tem-se de aplicar os outros seis. Assim, seu benfeitor ficava sempre por trás dos bastidores. Graças a isso ele era capaz de evitar ou aparar conflitos. Se houvesse discórdia, nunca era com ele e sim com a guerreira que estivesse servindo de fachada.
- Espero que você tenha percebido a essa altura - continuou ela - que só um mestre em espreita pode ser um mestre em loucura controlada. A loucura controlada não significa o estudo das pessoas. Significa, como meu benfeitor explicou, que os guerreiros aplicam os sete princípios básicos da arte de espreitar a tudo o que fazem, desde os atos mais simples até situações sérias de vida e de morte. A aplicação desses princípios redunda em três resultados. O primeiro é que os espreitadores aprendem a nunca se levarem a sério; aprendem a rir de si próprios. Se não se importam de parecer bobos, podem enganar a qualquer um. O segundo é que aprendem a ter uma paciência sem fim. Nunca estão com pressa, nunca se desesperam. E o terceiro é que aprendem a desenvolver uma capacidade infinita de improvisação.”
O Presente da Águia, pág. 231

“Disse que, para os feiticeiros, a espreita era o alicerce sobre o qual tudo o mais que faziam era construído.
- Alguns feiticeiros têm objeção ao termo espreita - continuou -, mas o nome surgiu porque implica comportamento sub-reptício.
"É chamado também a arte da furtividade, mas esse termo é igualmente desafortunado. Nós mesmos, por causa do nosso temperamento não-militante, o chamamos arte da loucura controlada. Você pode chamá-lo como quiser. Entretanto, iremos continuar com o termo espreita uma vez que é tão fácil dizer espreitador e, como meu benfeitor costumava dizer, tão estranho dizer fazedor de loucura controlada.
Eles riram como crianças à menção de seu benfeitor.”
O Poder do Silêncio, pág. 93

“- Na arte de espreitar - continuou Don Juan - há uma técnica que os feiticeiros usam muito: loucura controlada. Segundo eles, a loucura controlada é a única maneira que têm de lidar consigo mesmos, em seu estado de consciência e percepção expandidas, e com todos e tudo no mundo dos afazeres diários.
Don Juan explicou a loucura controlada como a arte do engano controlado ou a arte de fingir estar profundamente imerso na ação - fingindo tão bem que ninguém pudesse distingui-lo da coisa real. A loucura controlada não é um engano direto, mas um modo sofisticado, artístico, de estar separado de tudo permanecendo ao mesmo tempo uma parte de tudo. 
- A loucura controlada é uma arte - continuou Don Juan. - Uma arte que causa muitas preocupações, e muito difícil para se aprender. Muitos feiticeiros não suportam isso, não porque haja alguma coisa inerentemente errada com a arte, mas porque é preciso muita energia para exercê-la.
Don Juan admitiu que a praticava conscienciosamente, embora não gostasse particularmente de fazê-lo, talvez porque seu benfeitor fosse tão adepto a ela. Ou talvez fosse porque sua personalidade - que ele disse ser basicamente tortuosa e mesquinha - simplesmente não tinha agilidade necessária para praticar a loucura controlada.
Olhei para ele com surpresa. Parou de falar e fixou-me com seus olhos maliciosos.
- Na época em que chegamos à feitiçaria, nossa personalidade já está formada - disse, e encolheu os ombros em sinal de resignação - e tudo que podemos fazer é praticar a loucura controlada e rir de nós mesmos.
Senti uma onda de empatia e assegurei-lhe que para mim ele não era de modo algum mesquinho ou tortuoso.
- Mas esta é minha personalidade básica - insistiu. E eu retruquei que não era.
- Os espreitadores que praticam a loucura controlada acreditam que, em questão de personalidade, a raça humana inteira entra em três categorias - disse ele, e sorriu da maneira que sempre fazia quando estava me preparando algo.”
O Poder do Silêncio, pág. 233

“Don Juan perguntou a Tuliúno sobre a aparência de Túlio. Ele respondeu que o nagual Elias sustentava que a aparência era a essência da loucura controlada, e os espreitadores criavam aparência intentando-a, antes que a produzindo com a ajuda de disfarces. Os disfarces criavam aparências artificiais e pareciam falsos aos olhos. Intentar aparências era exclusivamente um exercício para espreitadores.
Tulítre falou em seguida. Disse que as aparências eram solicitadas do espírito. Elas eram pedidas e forçosamente chamadas; nunca eram inventadas de modo racional. A aparência de Túlio precisara ser chamada do espírito. E para facilitar isso, o nagual Elias colocou todos os quatro juntos num pequeno quarto isolado, e ali o espírito falou-lhes. O espírito disse-lhes que primeiro tinham de intentar sua homogeneidade. Após quatro semanas de isolamento total, eles conseguiram a homogeneidade.
O nagual Elias disse que o intento os havia fundido um ao outro e que haviam adquirido a certeza de que sua individualidade passaria despercebida. Agora tinham de chamar a aparência que seria percebida pelo observador. E ocuparam-se, chamando o intento para a aparência dos Túlios que Don Juan vira. Tiveram de trabalhar com muito empenho para aperfeiçoá-la. Focalizaram-se, sob a direção de seu professor, em todos os detalhes que iriam torná-la perfeita.”
O Poder do Silêncio, pág. 247

“Um guerreiro não tem honra, nem dignidade, nem família, nem nome, nem país; ele tem apenas a vida para ser vivida e, nessas circunstâncias, sua única ligação com seus semelhantes é sua loucura controlada.”
A Roda do Tempo, pág. 55

“Como nada é mais importante do que qualquer outra coisa, um guerreiro escolhe qualquer ato e age como se lhe importasse. Sua loucura controlada o faz dizer que o que ele faz importa e o faz agir como se importasse, e contudo ele sabe que não é assim; de modo que, quando completa seus atos, ele se retira em paz e quer seus atos tenham sido bons ou maus, dado certo ou não, isso absolutamente não o preocupa mais.”
A Roda do Tempo, pág. 56

“Um guerreiro pode escolher permanecer totalmente impassível e nunca agir, e comportar-se como se ser impassível realmente lhe importasse; ele também estará certo agindo assim porque isso também seria a sua loucura controlada.”
A Roda do Tempo, pág. 57

domingo, 4 de novembro de 2012

Os ciganos, Tarot, Quiromancia, Mistério

Índia - O Berço Cigano
 Já que este blog tem uma afinidade natural com o Mistério, não poderia deixar de falar do povo cigano, envolto desde a aurora dos tempos numa aura de enigmas, segredo e magia . Dizem que foram os responsáveis pela difusão do tarot no mundo inteiro. Dizem. Se for verdade, é um bom cartão de visita.
Cigano quer dizer "intocável". Vem do grego athinganoi, que se transformou em atsigan e tsigane. E reflete a relativa  incomunicabilidade que existiu entre esse povo e os demais. Na Espanha, seu nome é gitano, resquício da crença em sua origem egípcia (gitano vem de egiptano), o que também acontece com a denominação húngara de Faraonemtség, que quer dizer “raça do faraó”. A crença foi disseminada pelos próprios ciganos, que, ao chegarem à Europa, se apresentavam como nobres egípcios. Mas, na verdade, os ciganos têm ascendência hindu.

Semelhanças indicam a origem
Ruppa, em prakiti (dialeto hindu da casta Domba), significa prata. Rup, em romani (língua cigana), quer dizer a mesma coisa.  A coincidência ocorre entre muitas outras palavras das linguas prakiti e romani. Inclusive Roma, que os ciganos usam para nomear-se, é muito parecido com Domba, nome da casta hindu.
Não haveria parentesco entre os dois povos?  O costume das danças e do canto, a estatura média, a cor morena, os cabelos e olhos negros são comuns aos dois povos. Todos esses indícios respondem de modo afirmativo à interrogação.

Migração
O ramo Domba (que se transformaria nos ciganos) deslocou-se do centro da Índia para o noroeste, no séc. I a.C. Quatro séculos depois, migrava 
O Caminho Cigano no Mundo
novamente, dessa vez para o oeste em direção a Pérsia. Lá permaneceu até a invasão mongol, verificada no século XIII. Então, dividiu-se em dois grupos, dos quais um rumou para a Grécia, através da Armênia, e o outro para a Síria, a Palestina e o Egito. Os primeiros acabaram por atravessar o Danúbio, quando os turcos invadiram a Europa Oriental (século XIV). A partir de então, até por volta de 1460, difundiram-se pela Hungria, Áustria, Boêmia (parte da atual Checoslováquia), Hamburgo (atual Alemanha), França e Suíça.
 Apesar de se declararem nobres, eram escravizados logo que chegavam a esses países. Só a partir de 1496 puderam usufruir de alguma liberdade. O primeiro a favorecê-los foi Vladislau II, rei da Hungria, que lhes concedeu livre trânsito em território húngaro. 

Reações e perseguições
Da segunda metade do século XVI em diante, as coisas ficaram piores: começou a perseguição aos ciganos, primeiro movida pelos camponeses, depois pelos prefeitos das cidades e até pelos reis. No Ducado de Milão, em 1663, foi publicado um édito que proibia a entrada dos ciganos nos domínios milaneses, sob pena de sete anos de cárcere para os homens e de uma orelha cortada para as mulheres. Maria Teresa, da Áustria, em 1768 tornou ilegal a permanência de ciganos em seu país a menos que eles morassem em casas, trajassem à maneira dos camponeses e trabalhassem em ofícios definidos. Mas nem em Milão, nem na Áustria, nem no resto da Europa eles mudaram seu modo de vida. A América e a Austrália só os receberam na segunda metade do século XX.

Usos e costumes
Tradicionalmente, os ciganos levam vida nômade, deslocando-se em grupos de tamanhos diversos, compostos por um conjunto de núcleos familiares mais ou menos extensos, sob a liderança de um chefe vitalício escolhido. A maioria dos ciganos, até poucas décadas atrás, ainda formavam caravanas puxadas por cavalos; abrigavam-se em tendas, pedreiras e minas. Em fogueira, ao ar livre, cozinhavam seus frangos, ovos e vegetais. Seus alimentos, afirmam os comentaristas mais críticos, eram "quase sempre roubados, já que eles não plantam, nem criam animais para o abate". "Sua profissão é a mentira", diz preconceituosamente Cervantes. "Mas há uma lei cigana que proíbe roubar... alguém mais pobre." 
Viviam principalmente da criação e comércio de cavalos, do artesanato em metal, vime e madeira, e das artes divinatórias, como cartomancia e quiromancia. A música dos ciganos, executada em público apenas pelos homens, permanece muito popular e é uma atividade rendosa na Europa Central. Não abandonam a quiromancia, embora professem a religião dominante no país em que se instalam.
As adivinhações têm terminologia própria e algumas vezes utilizam as cartas como acessório. Através dos ciganos, o baralho (tarot) foi difundido pela Europa. Assimilam facilmente as artes do lugar onde habitam, em especial a música e as danças folclóricas. Interpretam-nas com um estilo próprio, que inclui o uso do violino, seu instrumento por excelência. Cada grupo tem um chefe natural, escolhido, não hereditário.
Na família, o membro central é a mãe, que exerce autoridade sobre os filhos e é dona do patrimônio. O mesmo sistema se aplica à tribo, que tem uma mãe tribal, a puri dai,  guardiã do código moral.  Os infratores são julgados por um júri de "condes". E, nos casos mais graves, a pena é o banimento da tribo. Alguns estudos dão nuances diferentes da organização social dos ciganos, possivelmente em razão da diversidade dos grupos estudados. Quanto à posição das mulheres dizem que "segundo os costumes ciganos, as mulheres devem subserviência aos homens, e as mulheres casadas sempre usam um lenço para cobrir a cabeça". 

A questão política
Várias foram as tentativas de agrupar os ciganos sob o poder de um só governante. Uma delas foi o aparecimento da dinastia Kwick, inaugurada por Gregory Kwick, cigano polonês que, por volta de 1883, se declarou "rei dos ciganos". Durante seu reinado, realizou-se, em 1909, o único recenseamento cigano de que se tem notícia; o censo informou que havia então na Europa 600 mil ciganos. Gregory abdicou em 1930 em favor de seu filho Michael II, que, após sete anos de governo, foi sucedido por Janusz I. Este proclamou-se administrador dos ciganos da Hungria, Espanha, Alemanha, Bulgária, Iugoslávia e Polônia. Planejou ir a Genebra reivindicar um país para seu povo, mas o projeto foi vetado por uma assembléia cigana. Seu "reinado" durou apenas um ano. Sucedeu-o Mathew Kwick, do qual não se tem maiores 
Em 1933, foi cogitada, sem êxito, a possibilidade de agrupar todos os ciganos do mundo (aproximadamente 2 milhões) nas ilhas da Polinésia, com subvenção da Liga das Nações. A idéia não se concretizou. Pouco depois, eclodiu a II Guerra Mundial (1939) e cerca de 20 mil ciganos foram exterminados nos campos de concentração. 
Os regimes comunistas da Europa Oriental do pós-guerra forçaram os ciganos a se fixarem em cidades industriais e residirem em grandes edifícios de apartamentos, desmembrando os grupos familiares extensos e obrigando-os a trabalhar em fábricas, fazendo-os abandonar o modo de vida tradicional.
A tendência dos governos pós-comunistas mais recentes foi permitir aos ciganos que se organizassem politicamente para encontrar os meios de reivindicar seus direitos como minoria étnica. 
Formaram-se associações e grupos de pressão, como é o caso dos phralip (em romani, "irmandade") da Hungria, para lutar por escolas especiais e adoção de livros pedagógicos na língua romani. A grande maioria do povo cigano, ainda enfrenta discriminação social, está sujeita a más condições habitacionais, desemprego e expectativa de vida mais baixa que a de seus compatriotas.
Hoje, eles estão espalhados em quase todo o mundo. E alguns relatos dão conta da inevitável mudança de costumes. "Cigano dos Estados Unidos não viaja mais de carroça: usa trailer motorizado; nem prepara mais sua refeição: come enlatados." 
Na União Soviética e na Iugoslávia, são publicados jornais em língua cigana. A Sociedade Cigana Lore, na Inglaterra, preocupa-se em recolher todas as informações possíveis sobre esse povo. A biblioteca da Universidade de Liverpool, também na Inglaterra, tem em seu acervo um conjunto de livros sobre os ciganos. Assim, esse povo se torna cada vez menos estranho aos demais.

Relato de Sarani Barrios: os ciganos Dohm 
O relato de Sarani Barrios sobre a cultura cigana do grupo Dohm foi compilado por Bete Torii a partir de entrevista realizada no segundo semestre de 2008, acrescida de referências feitas por Sarani no correr dos cursos que, no mesmo período, desenvolveu com o Clube do Tarô. Conhecer um pouco essa base cultural ajuda a compreender a atitude e o modo como os ciganos Dohm praticam as mancias.
Foi encantador entrever a força comunitária dos bandos, o processo orgânico e direto de transmissão do conhecimento tradicional, acompanhado do bom humor espontâneo que se fazia nos grupos ao tratar de certas particularidades da cultura Dohm, como foi o caso, por exemplo, da autoridade matriarcal, da magia, da sedução.
É muito confortador reconhecer a existência discreta mas muito viva, neste mundo e neste Brasil, de núcleos guiados pela solidariedade e pela sabedoria tradicional. Que suas boas vibrações alcancem a todos nós. (C.K.R.)

Apresentação
"Sou cigana  dohm, de pai e mãe ciganos. Meu nome de nascimento é Sarani Barrios, mas uso um nome brasileiro na minha vida profissional porque, assim como árabes ou outros povos que de alguma forma sofrem algum tipo de preconceito, recebemos um nome gaidji (não cigano) para não sermos pré-julgados na vida masbarra (fora do grupo). Já vivi em acampamentos, em vários países, e agora vivo em um apartamento. Mas continuo tendo estreito contato com o acampamento dohm mais próximo de São Paulo, que fica em Jundiaí, em uma propriedade particular. Levo uma vida normal, trabalhando e interagindo com gaidjis, mas mantenho hábitos que são exclusivos da minha cultura, como me basear pela Lua e louvá-la, prestar atenção aos sinais da Natureza e às estações do ano etc.

Povo cigano
Somos um povo muito antigo, e nos dividimos há pouco mais de 5.200 anos em dois grandes grupos: dohm e rohm. No Brasil, há uma concentração muito maior de rohm. Somos muito diferentes,  inclusive fisicamente. O dohm tem pele muito clara, cabelos escuros, olhos escuros, nariz sempre reto. O rohm tem cabelos e olhos claros, pele morena, nariz pequeno. Outra diferença é que, enquanto os rohm vivem em acampamentos pequenos, que migram juntos (o grupo todo) e acampam em áreas públicas ou livres, os dohm têm acampamentos fixos em áreas compradas e muradas, com infraestrutura construída para durar – e quem migra são as pessoas individualmente, conforme seu projeto de vida.
 Nosso ano novo é no dia 21 de maio. Nossa língua é o romani, que lembra o húngaro; não a ensinamos a nenhum gaidji. Como nossa tradição é oral, para pertencer ao povo cigano é necessário nascer e ser educado na nossa cultura. Ciganos nascem de ciganas; não há tradição passada apenas por pai cigano. Há aprendizados que não são transmitidos e outros podem ser levados adiante.  Aprendemos a leitura do tarot e a quiromancia desde a infância. Aprendemos a cultivar a beleza em nós mesmos e em tudo que nos rodeia. Essa é nossa tônica.

A posição da mulher e alguns costumes
Mulher Cigana - Espanha
Na vida daimarra (dentro do grupo) as mulheres são soberanas. Nossa sociedade é matriarcal e a mulher é o elemento mais importante, pois detém o poder de gerar homens e por isso desenvolve os elos de conexão com a natureza e os elementos fundamentais da vida. A essa força, chamamos dahom, a intuição. Toda mulher é vista dentro do acampamento como um ser superior. Tanto por uma questão fisiológica, como de delicadeza, de vivência, de sabedoria. 
Nós somos consideradas mais sábias e os homens aceitam isso com reverência, não existe uma resistência a nos aceitar. Tanto que no casamento cigano a mulher pode devolver o marido, se ela não gostar. O ideal para o casamento é juntar potenciais, então o marido tem que corresponder, se não correspondeu, a mulher devolve. 
A questão do dote da cigana no casamento é uma lenda; o “dote” dela é o que ela tem para oferecer por suas qualidades e sua educação. O nosso legado é justamente contra o apego material, que para nós não faz sentido. Nós achamos que alguém que precisa de jóias ou de uma bolsa de cinco mil reais tem um grande problema. Para nós o adorno é apreciado no sentido de criar beleza ao redor, mas não pelo valor da jóia em si. 
A história da virgindade das ciganas também é um mito. Nos acampamentos existe namoro, e a moça é estimulada a viver a primeira relação sexual com o homem de quem gosta, justamente para ter a vivência: como é que você vai casar com alguém se não sabe se combina com ele?  A sexualidade é vista sem tabu e também sem supervalorização. Por exemplo, quando eu tinha quatro anos minha avó já me ensinava como tocar um homem. Ela ensinava a delicadeza do toque feminino, dizendo: “um homem tem que ser tocado como se toca a superfície de um lago, sem formar ondas” – e isso era feito de uma maneira boa, sem erotismo gratuito. Quando aprendemos a dançar, aprendemos danças que são feitas para o homem – para que ele conheça as nossas delicadezas e o controle que temos sobre o corpo. Se eu tiver controle sobre o meu corpo eu vou ser uma boa mãe, não vou me deixar levar pela emoção. Se eu consigo seduzi-lo pelo olhar, eu sou franca com ele...     Esse é o nosso aprendizado, e é por isso que a mulher é considerada tão superior, porque ela tem um aparato que um homem não tem. A fisiologia feminina é muito estudada dentro do acampamento e a primeira menstruação é uma festa, porque é a abertura de outro canal. 
Uma menina que menstruou tem mais conhecimento para a leitura de qualquer mancia do que uma que ainda não menstruou, pois abre-se uma outra percepção: ela entra em mais um ciclo, entra em harmonia com a natureza. É um florescer.
Não existe cigana fumante, porque a gente não consegue entender o cheiro do cigarro, é algo impensável. Mulher tem que ser cheirosa, e não pode ser cheirosa uma mulher que fuma. Cigana não tem roupa de ficar em casa, não anda de chinelo, não anda despenteada. A gente nem olha no espelho se estiver desarrumada. Mulheres andam arrumadas sempre, no acampamento, e o contrário é uma vergonha, porque significa que ela está deixando de valorizar o fato de ser mulher. 
A roupa feminina tem toda uma simbologia, e a gente se rodeia de sedas de toque feminino, de flores perfumadas etc. A mulher cigana tem até que tomar cuidado fora do acampamento, porque para ela a sedução é uma coisa muito fácil e é necessário restringi-la ao que vale a pena. A gente aprende a cozinhar, aprende massagem, aprende tudo do universo feminino, não tem meio termo. E, aliás, eu não conheço homossexuais nos acampamentos. Possivelmente porque é tão clara a diferença e é tão cheio de orgulho o homem ser homem e a mulher ser mulher, que não existe a necessidade ou a vontade de experimentar o outro mundo. 
 Assim também, os relacionamentos são mais duradouros porque os ritos de passagem são claros. O adolescente não é rebelde, porque existe um rito de passagem da infância para a idade adulta. Não há dúvida ou necessidade de afirmação: ou você é adulto ou não é adulto. Tudo é tão claro e tão celebrado, que dá uma tranqüilidade para as pessoas viverem a vida sem se preocuparem com auto-afirmações, cada um sabe em que estágio da vida está. E cada momento é visto como uma festa, não existe melhor ou pior, existe um momento diferente do outro.

Destino, talento, felicidade
Os ciganos veem o destino da seguinte maneira: cada um de nós nasce com a missão de ir de A até B; esse destino, diferente para cada um, pode ser grandioso ou simples. Uma outra maneira de colocar a idéia é dizer que cada um de nós nasce com um dom ou talento que orienta o caminho que tem a percorrer.
Em romani, existe uma palavra que significa ao mesmo tempo dom e destino. Isso explica tudo: são a mesma coisa.. O dom é aquilo que fazemos com facilidade. Se você não sabe com que finalidade está no mundo, uma indicação é: o que você faz que lhe é fácil? O que você faz fácil é o seu talento e, portanto, é o seu destino. Se formos espertos, perceberemos logo nosso dom e faremos esse caminho em linha reta. Se não prestarmos atenção, ficaremos dando voltas e deixaremos coisas a resolver em outra vida. Há religiões que identificam isso como karma. 
Por que fazer coisas difíceis se o caminho da facilidade é o mais agradável? Uma das coisas do mundo de fora que nós ciganos não entendemos é: por que as pessoas dificultam tanto a vida? Se as suas habilidades e tudo aquilo que você faz sem esforço e com alegria constituem o seu destino, quanto mais você pratica sua alegria no dia a dia, mais perto você está de cumprir a sua missão, e quanto mais rápido você cumpre a sua missão, mais tempo vai ter para fazer outras coisas. Ser feliz é a grande contribuição que você pode dar para o mundo e a maior que pode dar a você mesmo. Esse é o destino: ser feliz, de forma simples.

Descobertas
Aqui entra a quiromancia, pois as mãos mostram quais são as nossas habilidades e quais os campos que devemos explorar. A expressão “ver o destino nas mãos” não se refere a ver o futuro, mas sim a identificar habilidades e fraquezas, pois isso abre um leque de coisas a serem feitas e mostra um caminho. Seu destino é o seu talento, é onde você vai chegar se prestar atenção a si mesmo. 
Para os ciganos, é muito mais interessante ser plural do que especialista. Quando a gente percebe que está se tornando muito especialista em alguma coisa, sente que está fechando as janelas e então vai fazer uma coisa oposta ou tenta mudar de área, para desenvolver as próprias capacidades e o autoconhecimento. O que mais eu sei fazer bem? Será que eu só sei fazer isso? É muito triste a gente achar que só tem um talento. Às vezes a gente se sente assim e a matriarca começa a fazer perguntas “qual foi a última coisa que você fez e que achou legal? quem você conhece que faz alguma coisa que você gostaria de fazer? como seria o seu dia se você não fosse quem é? onde você estaria agora se pudesse num clique aparecer em qualquer lugar? Se você fosse criança, se fosse velho, se fosse rico, se fosse pobre, se morasse na Bélgica, se você...”
Essa é uma prática que começa com as crianças, nas rodas. Por que é assim que a gente vai identificar os talentos. Às vezes a matriarca anda pelo acampamento e faz  perguntas às crianças, do tipo “onde você gostaria de estar agora?”. E a espontaneidade da resposta vai mostrando tendências.  
A gente treina isso e não se permite perder a espontaneidade quando é adulto. Existe um jogo entre os adultos, no acampamento. Quando duas pessoas se cruzam, caminhando, uma lança uma pergunta à outra: “o filme que você mais gostou, 3 segundos”; “um livro que você quer ler”; “uma pessoa que você quer conhecer”; e assim por diante. É uma maneira de a gente se conhecer, de olhar para dentro, de perceber as próprias inclinações.

O aprendizado
Procuramos identificar na criança os talentos naturais, para que ela não sofra para conquistar a sua missão. Se a vida da criança está difícil é porque ela – ou a gente, como educador – não está conseguindo identificar o que ela faz de modo fácil. Nossa perspectiva de educação é completamente oposta a forçar uma criança a aprender algo por mera obrigação. Se a criança está pintando e fazendo isso com prazer, a gente não a tira disso para que vá aprender matemática, não faz sentido pra nós. 
O nosso sistema de aprendizado também é muito diferente: a distância de pai e mãe para uma criança de dois anos é muito maior, no mundo cigano, do que no mundo fora. Nos acampamentos, uma criança de dois é ensinada por uma de quatro, que é ensinada por uma de seis, que é ensinada por uma de oito... Por que? Porque a memória da dificuldade de um certo estágio é muito maior em quem acabou de passar por ele. Uma criança que acabou de ser alfabetizada ensina a ler de maneira muito diferente de alguém que já lê há muito tempo. O adulto não lembra como era difícil; como vai ensinar? A criança sabe como é, esteve no mesmo lugar há pouco tempo. E se ela não está ensinando certo, tem alguém muito próximo para corrigir. É sempre escalonado. E se chega alguma coisa até o pai ou a mãe, é porque se trata de alguma coisa muito grave, que ninguém em toda essa escala conseguiu passar. 
Quanto à quiromancia e o tarô, todas as crianças aprendem desde muito cedo; continuam as que se destacam – geralmente, mulheres. 

Origens das mancias
Há mais de cinco mil anos nosso povo vem acumulando um conhecimento que começou com a observação do que a gente é. Os antigos viram que alguns indicativos do nosso corpo batiam com algumas características da personalidade, e começaram a estudar esse fato. 
Observando as características das crianças pequenas e a evolução delas, conseguiram ver como é que as diferentes personalidades se impunham.
A percepção dos “desenhos” que temos nas pontas dos dedos é uma coisa cigana, porque a gente já usava isso há milhares de anos: já marcávamos objetos com a impressão digital, como um carimbo, porque já sabíamos que não havia dois dedos iguais.
Das digitais evoluímos para todo o aspecto das mãos, porque começamos a ver que não existem mãos iguais; a gente vê os montes, o formato dos dedos e unhas, coloração etc. E desse estudo de comparação se foi criando um método que é passado da matriarca do bando para as meninas, e as meninas vão passando para as mais jovens. 
O conhecimento do tarô também se iniciou lá atrás, quando começamos a observar o ciclo da vida, pois o tarô representa esses ciclos. Depois de identificado os ciclos de vida é que esse conhecimento virou um baralho. A gente já jogava com os ciclos, já entendia as fases da vida e qual a regra que estava lidando com uma certa pessoa, desde o seu nascimento, que a gente identifica ao Mago, até a volta ao ponto zero – a infância ou a morte – que identificamos ao Louco.


Tarô - O Pendurado
Quiromancia - As linhas da mão
 Quiromancia e tarô: diferenças
A quiromancia mostra a personalidade, o jeito de ver a vida, pontos fracos e pontos fortes: as coisas que não podemos mudar em nós mesmos, mas aproveitar. O tarô é um momento, uma situação específica. O ideal é começar com a leitura da mão, que muitas vezes acaba esclarecendo muito do momento que a pessoa está vivendo: quanto mais nos conhecemos, mais fácil fica lidar com os acontecimentos da vida. O tarô é um instantâneo.
A leitura da mão é uma maneira de autoconhecimento, de saber quem sou eu, como eu lido com a minha vida, qual é o meu talento, meu destino. O tarô mostra um momento, uma foto daquilo que está acontecendo – e, então, ele tem um prazo de validade. É lógico que ele traz referências de quem você é, do que aconteceu, mas principalmente ele diz como é que está agora. A gente não é a mesma pessoa que era dez anos atrás, ou um ano atrás. Então, o tarô é uma ferramenta para nos guiar dentro de momentos, passo a passo. Consideramos o tarô uma escada: cada vez que você joga, você sobe um degrau. Quanto mais você conhece suas mãos, mais fácil é a subida e talvez você precise de menos degraus para chegar aonde quer. Geralmente, uma pessoa que tem uma boa leitura de mãos, que se conhece, usa muito pouco o tarô. Só usa o tarô em momentos de dúvida, de procura de orientação – mas não como uma coisa prática, de curiosidade. E quanto mais idosa, menos a pessoa usa o tarô e mais confia na própria mão.

Quiromancia 
A forma das mãos
Em um trabalho há alguns anos, na Alemanha, fiz estágio num hospital, fiquei meses lá, e consegui a permissão de ver as mãos das crianças que nasciam. Esse hospital atendia a elite da cidade ‘X’ em que eu estava, mas tinha também todo um trabalho de atender crianças que nasciam de mães drogadas, e muitas mães que não tinham condições de ter filhos vinham para Alemanha, porque a Alemanha proporcionava esse atendimento. E as crianças que foram mais negadas demoravam muito tempo para abrir a mão. 
Pois bem, o vínculo entre mãe e filho só acontece quando a criança consegue tocar a mãe de mãos abertas. Ela reconhece a confiança, a primeira pessoa para quem ela abre a mão é a mãe. Isso foi a coisa que mais me chamou a atenção e tem a ver com algo que nós ciganos falamos: que o que mais marca a vida de uma pessoa é o amor. Um amor não correspondido ou correspondido, uma crise, perda ou grande felicidade amorosa marcam mais uma mão do que a morte de um filho. Isso para mim é uma coisa impressionante. E a mão de quem lida bem com o amor é uma mão plana, aberta. 
Todo o nosso aprendizado foca muito mais isso do que as linhas. Vemos se os dedos são alongados ou largos, se a temperatura é quente ou fria, como é a cor, se a mão é grande ou pequena, como são as marcas e os montes e assim por diante. Eu também observo muito a postura de mãos... Por exemplo, pessoas muito desconfiadas e pessoas que têm muitos segredos relaxam com as mãos semi-fechadas. Mão fechada é agressão; quando você se defende, é justamente o oposto. Enfim, as mãos falam uma linguagem e dentro dessa linguagem a gente começa a entender a amplitude de cada ser. 
  Existe ainda a questão da habilidade manual, que é o domínio sobre as mãos. Geralmente são pessoas mais amorosas que lidam bem com agulhas, pincéis etc., e que se relacionam bem com o amor e conseguem entender a linguagem dele.
A mesma linguagem da mão a gente também traz nos pés, no rosto... Existem ciganos que se especializaram em leitura do rosto (fisiognomia), porque o rosto também é único. A propósito, uma cigana não tira a sobrancelha, porque com isso estaria tirando a força do olhar e deixando de ser quem é. Alterar a fisionomia seria o mesmo que fazer uma cicatriz na própria mão. O nariz adunco, por exemplo, tem um valor tremendo para o meu povo, jamais imagino uma cirurgia plástica para corrigir o nariz. A gente até brinca que diminuindo o nariz a pessoa está tirando uma parte da sabedoria, ou “ela não é sábia, pois se fosse não fazia a cirurgia”. 
A beleza, para nós, é muito fora da beleza convencional. Não vemos uma pessoa pelo modelo da beleza tradicional, mas mais ou menos assim: “essa boca assim é porque traz boas notícias, o queixo é assim porque encara a vida com coragem...” É assim que funciona.

Da infância à vida adulta
A mão conta a sua história, e quando eu começo a ler a mão de alguém eu começo lá na infância, porque tenho que pegar a pessoa pela mão e trazer para o momento em que ela está, e então mostrar aonde ela pode chegar dentro das suas potencialidades. É muito satisfatório ver pessoas que realmente evoluíram. Mas quando a gente começa, lá na infância, e a pessoa se reconhece inteiramente, isso pode ser um indicativo de uma demora muito grande para evoluir. Será que faltou experiência, ou será que ela não está usando todo o potencial que trouxe? 
Ninguém deveria permanecer igual ao que era na infância. Se uma pessoa de cinqüenta anos ainda está na primeira fase da mão, eu já prevejo ou muita agitação nos anos seguintes, ou um retorno em outra vida para poder fazer o que ficou para trás. Então é preciso esclarecer: olhe até onde você pode chegar, será que você está fazendo direito?  
Outra explicação para uma mão que não muda é que se trate de uma pessoa de alma velha, que tenha vindo com a mão mais pronta, isso acontece. Mas é um caso de “velhice”, não é um caso que a gente detecta como sendo um caso de infância ainda.

Explorar potenciais; o contrário da especialização
É muito comum eu dizer a alguém: “a sua mão mostra que você tem facilidade para fazer tal coisa” – e a pessoa responder: “ah isso eu tenho, de fato, mas preciso melhorar tal outra coisa”. Não é essa a função da mão. Não é a melhoria do ponto fraco, mas a potencialização do ponto forte. Por que você vai insistir em fazer melhor uma coisa para a qual você não tem aptidão? Não faz sentido para a gente. O que você tem de bom? A parte boa, se for desenvolvida, vai suprir aquilo que é uma parte não boa. Então, não perca tempo. É lógico que todo mundo está aqui para melhorar, mas vamos melhorar aquilo que já é bom.
Tentar desenvolver uma aptidão inexistente é mais ou menos como reformar uma casa. Se vai fazer uma casa nova, você já constrói tudo certo, enquanto uma casa reformada nunca vai ser perfeita. Não fique reformando a casa. Você é uma boa pianista? Não se preocupe com sua falta de aptidão para línguas ou se alguém acha que você precisa estudar mais inglês. Não se afaste de seus talentos, vá estudar piano.
Mas não estou falando de especialização. Para o cigano a especialização é um problema, não uma solução. Para nós, muitos talentos dão a liberdade de se poder ir para diversos lugares. Uma pessoa de vários talentos é geralmente considerada alma mais velha, porque ela consegue ter liberdade, não precisa passar pela dificuldade. 
Todo mundo tem pelo menos um talento, se você não conseguir detectar mais de um, use esse. Se você se vê com vários talentos, aproveite a delícia que é ser uma pessoa assim. E lembre que não existe talento melhor ou menor. 
Outra imagem que usamos: ter um talento é ter a mala pronta pra embarcar numa determinada viagem; e é claro que é melhor ter várias malas prontas. Você pode embarcar a qualquer momento, pois tem uma mala de verão, uma mala de inverno uma mala para o campo, uma mala para a praia... Se você só tem uma mala de inverno, torça para passar um trem para a Sibéria. Se tem várias, aproveite quando passar o primeiro trem em que você ache que vai se sentir bem e entre nesse trem. 
Também pode acontecer de você ter uma mala para ir à praia, mas não vai. Fica naquela atitude: “eu tenho esse talento, mas não é ele que eu quero desenvolver, prefiro outro”. O que acontece muito é que há pessoas que estão com a mala pronta, têm um talento imenso todo ali, mas passa o trem e elas falam “mas esse trem é verde e eu não queria essa cor”. E perdem a oportunidade. Se você não tem uma outra mala, entre no trem. Não fique esperando a sorte perfeita. Ainda que não saiba o caminho, entre no trem, a vida vai te levar, e a vida é fluidez. Agora se você tem outras malas, ótimo, você pode ficar lá o dia todo esperando o trem que te falar o coração, é essa a idéia.

Cortes, cicatrizes, marcas
Um machucado na mão sempre é algum acontecimento, alguma mudança, geralmente é a pessoa dando um olé no destino, mudando o caminho. Um grande amor faz muito isso. Outro dia eu cruzei com um amigo meu - eu fui ao casamento dele, mas saí cedo porque tinha um outro compromisso – e ele disse que na hora do brinde tinha machucado a mão. E ficou uma cicatriz, que é uma cicatriz da realização do amor da vida dele.

Tarô - Tarólogo versus cartomante
Para nós, ciganos, tarológo é um estudioso da ferramenta, mas não necessariamente usa a ferramenta, e cartomante é aquele que usa as cartas para a mancia. Existe uma diferença; e apesar de eu saber que hoje existem muitos tarólogos que são também cartomantes, não é essa leitura que a gente tem. Dentro do bando, geralmente os homens são tarólogos e as mulheres são cartomantes. Eles aprofundam o estudo até para questionar, para conhecer a história, e se você perguntar qualquer coisa eles vão saber tudo, mas nunca colocam as cartas. 
Ou seja, o tarólogo não necessariamente é um cartomante, mas todo cartomante é um tarólogo. Porque para ser um cartomante é preciso passar pela fase tarólogo. Mas eu entendo, pelo que o Constantino e outros me disseram, que algumas pessoas passaram a adotar o nome de tarólogo justamente para se diferenciar dos muitos cartomantes que não passaram por essa fase de estudo.
Não são só as mulheres que lêem o tarô, entre os ciganos. Os homens também aprendem e alguns lêem bem, mas a gente sempre acredita que a mulher tem um pouquinho mais de sensibilidade para ligar os pontos. Porque o tarô é vivência; o aprendizado completo de determinadas cartas está ligado à possibilidade de se identificar com essas vivências, e existem coisas que só a mulher vive por completo. Os ciclos são femininos. As mulheres menstruam, engravidam, amamentam, cuidam – coisas que são fisicamente impossíveis ao homem. É por isso que as mulheres têm uma habilidade maior, não porque sejam espiritualmente mais evoluídas. 

Como ocorre o aprendizado do tarô
Para nós o tarô conta uma evolução, uma história. No acampamento, as crianças aprendem o tarô desde muito pequenas. Cada um dos arcanos maiores é apresentado de uma forma individual, em sequência, e a gente tem que viver aquela carta. As cartas primeiras são as cartas da infância, situações que acontecem na infância, e a gente só passa uma carta quando viveu alguma situação que nos faz entender o que é aquilo. 
 Por exemplo, o momento das perguntas, quando a criança já fala e começa a perguntar “o que é isto? o que é aquilo?” corresponde ao Mago. Por que é essa a postura de vida que o Mago traz: querer saber, ter curiosidade, olhar o que está por trás, de onde vem etc.
 O aprendizado do tarô não é obrigatório, é para as crianças que se interessam. Mas é uma coisa que quase todas querem, porque elas mesmas consideram mais evoluídas aquelas que dominam as cartas. E é um aprendizado que ajuda na concepção da vida, nas pequenas crises, nas situações de disputa, no primeiro amor, tudo.  
 Como já disse, a gente começa carta por carta e vai passando pelos arcanos maiores e os menores, e geralmente o fim do aprendizado ocorre aos 10 ou 11 anos, mais ou menos. Esse é o tempo que levamos para fazer o baralho todo e que acreditamos que as situações todas tenham sido vividas ou aprendidas de uma forma mais ou menos intensa. Muitos dos aprendizados são pautados em exemplos: quando acontece alguma coisa significativa no acampamento, a matriarca chama todo mundo e fala “isso que está acontecendo é a carta tal”. Dessa forma, mesmo não tendo vivido a situação, a gente assimila aquele conhecimento. 

Jogar para si mesmo
Uma coisa inaceitável para nós é o cartomante que não joga para si mesmo, porque se o aprendizado está ligado à vivência, como é que você vai jogar se não viveu, ou se não sabe que carta saiu na situação em que você estava vivendo aquilo? Nós usamos a metáfora “você tem que se sentir na tenda do outro”; se eu não me sinto na sua tenda, como vou orientá-lo? O aprendizado dos nossos médicos – a gente tem uma espécie de um xamã – é diferente; um médico não precisa ter passado por todas as doenças, só precisa ter passado pelo conhecimento das ervas. Mas o cartomante precisa ter passado pela vivência, é como se ele precisasse ter passado por todas as doenças para poder entender. E tirar cartas para si mesma nas diferentes situações é uma forma de identificar um conhecimento: “quando eu estava passando por aquele problema eu tirei esta carta”. 
Dentro do acampamento, as pessoas de alma velha, como eu, são as mais procuradas quando as ciganas querem saber do jogo, pois quanto mais velha a sua alma, mais assertivo o seu tarô. Por que? Porque eu vivi 400 anos, então deu para passar por todas as situações. É mais ou menos essa a percepção, tudo está ligado ao quanto você viveu. As pessoas mais sofridas e as que tiveram grandes acontecimentos na vida estão numa hierarquia mais alta, então quando acontece uma grande tragédia na vida de uma cigana, os outros falam “vamos jogar com ela, porque agora seu tarô deve estar bom”. A lógica é a seguinte: aquele sofrimento faz com que aumente o grau de compreensão que ela tem de algo que a toca."

Compilação de Constantino K. Riemma - www.clubedotaro.com.br