domingo, 4 de agosto de 2013

O Impulso da Terra

A obra de Castaneda tem uma passagem cativante e ao mesmo tempo desconcertante. É a estranha afirmação de que "A chave mágica que abre as portas da Terra é feita de silêncio interno e mais qualquer coisa que brilhe." É xamanismo puro, juntando silêncio interior e luz. Uma das índias aprendizes de Dom Juan, no livro O Segundo Círculo do Poder, afirma: O Nagual disse que o melhor meio de se conseguir energia naturalmente, é deixar o Sol entrar pelos seus olhos, especialmente o olho esquerdo.
Na passagem descrita abaixo os dois mestres Dom Juan e Dom Genaro mostram a Castaneda na prática, sem teoria,  como funciona e o que é o fenômeno da Percepção, pelo qual A Consciência percebe o mundo que conhecemos a partir de como somos feitos, ou seja, casulos luminosos assim como esse ser vivo, a Terra, também é. E mais, o que precisamos fazer para perceber outros mundos com a ajuda do "Impulso da Terra", ou seja, alinhar e iluminar as emanações internas do nosso casulo com as emanações externas do universo presentes na Terra. 
Vamos lá:

"- Vamos caminhar pela estrada de Oaxaca - disse-me Dom Juan. - Genaro está esperando por nós em algum ponto do caminho.
Seu convite tomou-me de surpresa. Eu passara todo o dia esperando que continuasse sua explicação. Deixamos sua casa e atravessamos em silêncio a cidade até a estrada de terra. Caminhamos tranqüilamente por um longo tempo. Subitamente, Dom Juan começou a falar.
- Tenho falado sobre as grandes descobertas que os antigos videntes fizeram. Assim como descobriram que a vida orgânica não é a única vida presente na Terra, também descobriram que a própria Terra é um ser vivo.
Esperou um pouco antes de continuar. Sorriu-me como se me convidasse a fazer um comentário. Não me ocorreu nada para dizer.
- Os antigos videntes viram que a Terra tem um casulo continuou. - Viram que existe uma bola circundando a Terra, um casulo luminoso que contém as emanações do Mar escuro da Consciência, a Águia. A Terra é um gigantesco ser consciente, sujeito às mesmas forças que nós.
Explicou que os antigos videntes, ao descobrirem isso, ficaram imediatamente interessados no uso prático que poderiam fazer desses conhecimentos. O resultado do seu interesse foi que as categorias mais elaboradas de suas feitiçarias tinham a ver com a Terra. Consideravam a Terra como fonte última de tudo que somos.
Dom Juan reafirmou que os antigos videntes não estavam enganados a esse respeito, porque a Terra é com efeito nossa fonte última.
Não disse nada mais até que encontramos Genaro, cerca de um quilômetro e meio estrada acima. Estava esperando por nós, sentado numa pedra ao lado da estrada.
Cumprimentou-me com grande efusão. Disse-me que devíamos subir ao topo de umas pequenas montanhas agrestes cobertas por vegetação rústica.
- Nós três vamos nos sentar apoiados em uma pedra disse Dom Juan - e olhar para a luz do sol refletida nas montanhas do leste. Quando o sol se puser atrás dos picos do oeste, a Terra poderá deixá-lo ver o alinhamento.
Quando atingimos o alto de uma montanha, sentamo-nos como Dom Juan havia dito, com as costas contra uma pedra. Dom Juan fez-me sentar entre os dois.
Perguntei-lhe o que estava planejando fazer. Suas declarações veladas e seus longos silêncios eram ameaçadores. Sentia-me terrivelmente apreensivo.
Ele não me respondeu. Continuou falando como se eu não tivesse dito nada.
- Foram os antigos videntes que, ao descobrirem que a percepção é alinhamento, tropeçaram em algo monumental. A parte triste é que suas aberrações impediram novamente que soubessem o que haviam realizado.
Apontou a cadeia de montanhas a leste do pequeno vale onde a cidade está localizada.
- Há cintilação suficiente naquelas montanhas para abalar seu ponto de aglutinação. Exatamente antes de o sol se pôr atrás dos picos do oeste, você terá alguns momentos para todas as cintilações de que precisa. A chave mágica que abre as portas da Terra é feita de silêncio interno e mais qualquer coisa que brilhe.
- O que devo fazer exatamente, Dom Juan?
Ambos examinaram-me. Pensei ver em seus olhos uma mistura de curiosidade e desagrado.
- Simplesmente corte o diálogo interno - disse-me Dom Juan. Senti um choque intenso de ansiedade e dúvida; não tinha confiança de que pudesse fazê-lo à vontade. Após um momento inicial de desagradável frustração, resignei-me a simplesmente relaxar.
Olhei ao redor. Percebi que estávamos suficientemente alto para enxergar o vale longo e estreito. Mais de metade dele estava coberto com as sombras do crepúsculo. O sol ainda iluminava o sopé da cadeia de montanhas do leste, no outro lado do vale; a luz do sol dava uma coloração ocre às montanhas erodidas, enquanto os picos azulados mais distantes adquiriram um tom púrpura.
- Percebe que já fez isto antes, não? - perguntou Dom Juan num sussurro.
Disse-lhe que não havia percebido coisa alguma.
- Sentamo-nos aqui antes, em outras ocasiões - insistiu - mas isso não importa, porque esta ocasião é a que vai contar.
- Hoje, com a ajuda de Genaro, você irá encontrar a chave que abre tudo. Não será capaz de usá-la ainda, mas saberá o que é e onde está. Os videntes pagam os preços mais caros para saber disso. Você mesmo vem pagando seu tributo todos esses anos.
Explicou que o que chamava de chave de tudo era o conhecimento em primeira mão de que a Terra é um ser consciente e, como tal, pode dar aos guerreiros um grande impulso, um empurrão que vem da consciência da própria Terra no instante em que as emanações do interior dos casulos dos guerreiros alinham-se com as emanações apropriadas do interior do casulo da Terra. Uma vez que tanto ela quanto o homem são seres conscientes, suas emanações coincidem, ou melhor, a Terra possui todas as emanações presentes no homem e, além disso, todas as emanações presentes em todos os seres conscientes, orgânicos e inorgânicos. Quando ocorre o alinhamento, os seres conscientes usam este alinhamento de um modo limitado e percebem seu mundo. Os guerreiros podem usar esse alinhamento para perceber, como todos os demais, ou usá-lo como um impulso que lhes permita entrar em mundos inimagináveis.
- Venho esperando que você me faça a única pergunta com sentido que poderia fazer, mas você nunca pergunta - continuou. - Você teima em perguntar se o mistério de tudo está dentro de nós. De qualquer modo, chegou bem perto.
"O desconhecido não está realmente dentro do casulo do homem nas emanações intocadas pela consciência e, no entanto, de certo modo, está lá. Esse é o ponto que você não compreendeu. Quando lhe disse que podemos aglutinar sete mundos além do que conhecemos, você entendeu que isto é algo interno, porque tende a acreditar que está apenas imaginando tudo que faz conosco. Por isso nunca me perguntou onde o desconhecido está realmente. Há anos venho traçando círculos com minha mão para indicar tudo ao redor de nós, dizendo que é lá que está o desconhecido. Mas você nunca ligou as coisas."
Genaro começou a rir, e depois tossiu e levantou-se.
- Ele ainda não ligou as coisas - disse a Dom Juan. Admiti para eles que, se havia uma ligação a ser feita, eu não estava percebendo.
Dom Juan reafirmou várias vezes que as emanações presentes dentro do casulo do homem só estão ali para a consciência, e que a consciência combina aquelas emanações com uma quantidade igual de emanações livres. Estas se chamam emanações livres porque são imensas; e dizer que fora do casulo do homem está o incognoscível é dizer que dentro do casulo da Terra está o incognoscível. Entretanto, no interior do casulo da Terra também está o desconhecido, e dentro do casulo do homem o desconhecido são as emanações intocadas pela consciência. Quando o brilho da consciência as toca, tomam-se ativas e podem ser alinhadas com as emanações livres correspondentes. Quando isto acontece, o desconhecido é percebido e toma-se conhecido.
- Sou muito estúpido, Dom Juan. Precisa trocar as coisas em miúdos para mim.
- Genaro vai fazer isso para você - retorquiu Dom Juan.
Genaro levantou-se e começou a executar a mesma marcha de poder que havia executado antes, quando circulou uma imensa rocha achatada em um campo de milho perto de sua casa com Dom Juan assistindo fascinado. Dessa vez, Dom Juan sussurrou em meu ouvido que eu deveria tentar ouvir os movimentos de Genaro, especialmente os movimentos de suas coxas quando se erguiam contra seu peito a cada passo que dava.
Segui os movimentos de Genaro com os olhos. Em poucos segundos, senti que alguma parte de mim fora aprisionada pelas pernas de Genaro. O movimento de suas coxas não me soltava. Era como se estivesse caminhando com ele. Sentia-me mesmo sem fôlego. Percebi, então, que estava realmente seguindo Genaro. De fato caminhava com ele, afastando-me do lugar onde estivéramos sentados.
Não vi Dom Juan, apenas Genaro caminhando diante de mim da mesma maneira estranha. Caminhamos por horas e horas.
Minha fadiga era tão intensa que fiquei com uma terrível dor de cabeça e me senti mal subitamente. Genaro parou de caminhar e veio para o meu lado. Havia um intenso brilho ao redor de nós, e a luz se refletiu nas feições de Genaro. Seus olhos brilhavam.
- Não olhe para Genaro! - Uma voz ordenou-me ao ouvido. - Olhe ao redor!
Obedeci. Pensei que estava no inferno! O choque de ver a paisagem foi tão grande que gritei de terror, mas não havia som em minha voz. Ao redor de mim estava a imagem mais vívida de todas as descrições do inferno de minha criação católica. Via um mundo avermelhado, quente e opressivo, escuro e cavernoso, sem céu, sem qualquer luz além das reflexões malignas das luzes avermelhadas que se mantinham em movimento ao redor de nós, em grande velocidade. Genaro começou a caminhar novamente, e algo puxou-me com ele. A força que me fazia segui-lo também evitou que eu olhasse ao redor. Minha consciência estava colada aos movimentos de Genaro.
Vi-o desabar como se estivesse profundamente exausto. No instante em que tocou o solo e estendeu-se para descansar, algo foi liberado em mim e fui novamente capaz de olhar ao redor. Dom Juan me fitava com ar de interrogação. Eu estava de pé diante dele. Encontrávamo-nos no mesmo lugar onde havíamos sentado, numa espaçosa saliência rochosa no topo de uma pequena montanha. Genaro ofegava e bufava, e eu também. Estava coberto de transpiração. Meu cabelo ensopara. Minhas roupas pingavam como se eu tivesse afundado num rio.
- Meu Deus, o que está acontecendo? - perguntei, com profunda seriedade e preocupação.
A exclamação soou tão imbecil que Dom Juan e Genaro começaram a rir.
- Estamos tentando fazer você compreender o que é o alinhamento - disse Genaro.
Cuidadosamente, Dom Juan ajudou-me a sentar. Sentou-se a meu lado.
- Lembra-se do que aconteceu?
Disse-lhe que sim, e ele insistiu em que lhe contasse exatamente o que tinha visto. Sua solicitação era incongruente com o que me dissera, que o único valor de minhas experiências era o deslocamento de meu ponto de aglutinação, e não o conteúdo de minhas visões. Explicou que Genaro tentara ajudar-me antes de maneira bastante parecida à que havia usado agora, mas que nunca pude lembrar-me de nada. Disse que Genaro guiara meu ponto de aglutinação desta vez, como havia feito antes, para aglomerar um mundo com outro dos grandes feixes de emanações.
Houve um longo silêncio. Eu estava tonto, chocado, embora minha consciência estivesse mais aguçada do que nunca. Pensei que havia finalmente compreendido o que era alinhamento. Algo dentro de mim, que eu vinha ativando sem saber como, deu-me a certeza de que eu compreendera uma grande verdade.
- Acho que você está começando a acumular seu próprio ímpeto - disse-me Dom Juan. - Vamos para casa. Foi bastante para um dia.
- Ora, vamos - disse Genaro. - Ele é mais forte do que um touro. Deveria ser empurrado um pouco além.
- Não! - disse Dom Juan enfaticamente. - Temos que economizar sua força. Ele já gastou muito.
Genaro insistiu para que ficássemos. Olhou para mim e piscou.
- Olhe - disse-me, apontando para a cadeia de montanhas do leste. - O sol mal se moveu alguns centímetros sobre aquelas montanhas e ainda assim você já caminhou no inferno por horas e horas. Não acha isso desconcertante?
- Não o assuste desnecessariamente! - protestou Dom Juan, quase com veemência.
Foi então que vi suas manobras. Naquele momento, a voz da visão disse-me que Dom Juan e Genaro eram uma dupla de soberbos espreitadores brincando comigo. Era Dom Juan que sempre me empurrava além de meus limites, mas sempre deixava Genaro ser o vilão. Naquele dia na casa de Genaro, assim que atingi um estado perigoso de medo histérico quando Genaro perguntou a Dom Juan se eu deveria ser empurrado e Dom Juan assegurou-me que ele estava divertindo-se à minha custa, Genaro estava na verdade preocupando-se comigo.
Fiquei tão chocado com a minha visão que comecei a rir. Tanto Dom Juan quanto Genaro olharam-me com surpresa. Então Dom Juan pareceu perceber imediatamente o que estava se passando em minha mente. Contou a Genaro, e ambos riram como crianças.
- Você está ficando adulto - disse-me Dom Juan. - Bem na hora. Você não é nem estúpido demais nem inteligente demais, exatamente como eu. Mas não é como eu em suas aberrações. Nisso, parece-se mais com o nagual Julian, só que ele era brilhante.
Levantou-se e distendeu as costas. Olhou para mim com os olhos mais penetrantes e ferozes que eu jamais havia visto. Levantei-me.
- Um nagual nunca deixa ninguém saber que ele está no comando - disse. - Um nagual vai e vem sem deixar rastros. Essa liberdade é o que faz dele um nagual.
Seus olhos lampejaram por um instante, e depois cobriram-se com uma nuvem de brandura, amabilidade e compaixão, e eram novamente os olhos de Dom Juan.
Eu mal podia manter o equilíbrio. Estava oscilando sem controle. Genaro saltou para o meu lado e ajudou-me a sentar. Ambos sentaram-se flanqueando-me.
- Você vai captar um impulso da Terra - disse-me Dom Juan em um ouvido.
- Pense nos olhos do nagual - disse-me Genaro no outro.
- O impulso virá no momento em que você enxergar a cintilação no alto daquela montanha - disse Dom Juan, e apontou para o pico mais alto da cadeia do leste.
- Nunca verá outra vez os olhos do nagual - sussurrou
Genaro.
- Vá com o impulso para onde ele o levar - disse Dom Juan.
- Se pensar nos olhos do nagual, irá perceber que há dois lados numa moeda - sussurrou Genaro.
Eu queria pensar no que ambos estavam dizendo, porém meus pensamentos não me obedeciam. Algo fazia pressão sobre mim. Senti que estava encolhendo. Tive uma sensação de náusea.
Vi as sombras do entardecer avançando rapidamente encosta acima naquelas montanhas do leste. Tive a sensação de que estava correndo atrás delas.
- É agora - disse Genaro em meu ouvido.
- Olhe o pico grande, olhe a cintilação - falou Dom Juan em meu outro ouvido.
Via-se realmente um ponto de brilho intenso onde Dom Juan havia apontado, no pico mais alto da cadeia. Observei o último raio de sol refletindo-se nele. Senti um frio na boca do estômago, como se estivesse em uma montanha-russa.
Senti, mais do que ouvi, o ruído distante de um terremoto que abruptamente me engolfou. As ondas sísmicas era tão altas e enormes que perderam todo o sentido para mim. Eu era um micróbio insignificante sendo torcido e virado.
O movimento diminuiu aos poucos. Houve mais uma sacudidela antes que tudo se detivesse. Tentei olhar ao redor. Não tinha qualquer ponto de referência. Parecia estar plantado, como uma árvore. Acima de mim havia uma cúpula branca, inconcebivelmente grande. Sua presença fez-me sentir exaltado. Voei em sua direção, ou melhor, fui lançado como um projétil. Tinha a sensação de estar confortável, cuidado, seguro; quanto mais perto chegava da cúpula, mais intensos se tornavam esses sentimentos. Finalmente venceram-me e perdi toda a consciência de mim mesmo.
A coisa seguinte que percebi foi estar ondulando suavemente no ar como uma folha que cai. Sentia-me exausto. Uma força de sucção começou a puxar-me. Atravessei um buraco escuro e então estava com Dom Juan e Genaro.

No dia seguinte, Dom Juan, Genaro e eu fomos a Oaxaca. Enquanto Dom Juan e eu perambulávamos pela praça, ao entardecer, ele repentinamente começou a falar sobre o que fizéramos no dia anterior. Perguntou-me se havia entendido ao que se referia quando dissera que os antigos videntes tropeçaram em algo monumental.
Disse-lhe que sim, mas que não podia explicar em palavras. - E o que acha que era a coisa principal que desejávamos que encontrasse no topo daquela montanha?
- Alinhamento - disse uma voz em meu ouvido, ao mesmo tempo em que eu dizia o mesmo.
Virei-me numa ação reflexa e dei com Genaro, que estava exatamente atrás de mim, caminhando em minhas pegadas. A rapidez de meu movimento surpreendeu-o. Abriu-se num sorriso e então abraçou-me.
Sentamo-nos. Dom Juan disse que havia pouquíssimas coisas que ele poderia dizer sobre o impulso que eu recebera da Terra, que os guerreiros estão sempre sós em tais casos e que as verdadeiras percepções vêm muito mais tarde, depois de anos de luta.
Disse a Dom Juan que o meu problema em compreender era aumentado porque ele e Genaro estavam fazendo todo o trabalho. Eu era simplesmente um personagem passivo, que só podia reagir às suas manobras. Não podia de maneira alguma iniciar qualquer ação, pois não sabia qual seria a ação apropriada, nem como iniciá-la.
- É precisamente esta a questão - disse Dom Juan.
Você ainda não deve saber. Você será deixado para trás, sozinho para reorganizar por sua própria conta tudo o que estamos fazendo com você agora. Essa é a tarefa que todo nagual tem de enfrentar.
"O nagual Julian fez a mesma coisa comigo, de um modo muito mais rude do que o usado com você. Ele sabia o que estava fazendo; era um nagual brilhante, que foi capaz de reorganizar em poucos anos tudo o que o nagual Elias lhe havia ensinado. Fez em tempo reduzidíssimo algo que tomaria a vida toda para você ou para mim. A diferença foi que o nagual Julian só necessitava de uma leve insinuação; a partir dali sua consciência assumia o comando, abrindo a única porta que existe."
- O que quer dizer, Dom Juan, a única porta que existe? - Quer dizer que, quando o ponto de aglutinação do homem se desloca além de um limite crucial, os resultados são sempre os mesmos para qualquer homem. As técnicas para fazê-lo deslocar-se podem ser muito diferentes, mas os resultados são sempre os mesmos, ou seja: o ponto de aglutinação aglomera outros mundos, auxiliado pelo impulso da Terra..
- O impulso da Terra é o mesmo para todos os homens,
Dom Juan?
- É claro. A dificuldade para o homem médio é o diálogo interno. A pessoa só pode usar o impulso quando atinge um estado de silêncio total. Você vai comprovar esta verdade no dia em que tentar usar o impulso sozinho.
- Eu não acho que devia tentar - disse Genaro sinceramente. - São necessários anos para tornar-se um guerreiro impecável. Para suportar o impacto do impulso da Terra, você precisa ser melhor do que agora.
- A rapidez do impulso irá dissolver tudo em você - disse
Dom Juan. - Sob seu impacto, tornamo-nos nada. Velocidade e sentido de existência individual não combinam. Ontem na montanha, Genaro e eu amparamos você e servimos de âncora; de outro modo você não teria regressado. Seria como alguns homens que, propositalmente, usaram esse impulso e entraram no desconheci do, onde continuam vagando em alguma imensidão incompreensível.
Queria que ele explicasse melhor, mas recusou-se. Mudou de assunto abruptamente.
- Há uma coisa que você ainda não compreendeu sobre a Terra ser um ser consciente. E Genaro, esse pavoroso Genaro, quer empurrá-lo até que compreenda.
Ambos riram. Brincando, Genaro deu-me um empurrão e piscou para mim enquanto pronunciava: "Eu sou pavoroso."
- Genaro é um capataz terrível, vil e rude - continuou Dom Juan.- Ele não se importa com seus medos e empurra-o sem dó nem piedade. Se não fosse por mim...
Era a imagem perfeita de um velho senhor bondoso e amável. Baixou os olhos e suspirou. Os dois caíram numa gargalhada ruidosa.
Quando se aquietaram, Dom Juan disse que Genaro desejava mostrar-me o que eu ainda não havia compreendido, que a suprema consciência da Terra é o que torna possível para nós passarmos para outras grandes faixas de emanações.
- Nós, seres vivos, somos percebedores - disse ele. – E percebemos por que algumas emanações do interior do casulo do homem se alinham com algumas emanações de fora. O alinhamento, portanto, é a passagem secreta, e o impulso da Terra é a chave. Genaro quer que você observe o momento de alinhamento. Olhe, para ele!
Genaro levantou-se como um ator e fez uma mesura, depois mostrou-nos que não trazia nada em suas mangas ou nas pernas de suas calças. Tirou os sapatos e sacudiu-os para mostrar que não havia nada escondido ali também.
Dom Juan estava rindo com total abandono. Genaro moveu suas mãos para cima e para baixo. O movimento criou uma imediata fixação em mim. Senti que nós três subitamente nos levantávamos e afastávamo-nos andando da praça, comigo entre os dois.
Enquanto continuamos andando, perdi minha visão periférica. Não distinguia mais as casas ou as ruas. Não percebi as montanhas ou a vegetação, também. Em dado momento, notei que havia perdido Dom Juan e Genaro de vista; em vez disso, via dois volumes luminosos movendo-se para cima e para baixo ao meu lado.
Senti um pânico instantâneo, que controlei imediatamente.
Tive a incomum porém bem conhecida sensação de que eu era eu mesmo mas, ainda assim, não o era. Estava consciente, entretanto, de tudo ao meu redor por meio de uma capacidade ao mesmo tempo estranha e extremamente familiar. A visão do mundo veio a mim de uma só vez. Tudo em mim via; a totalidade do que eu, em minha consciência normal, chamo de meu corpo era capaz de sentir como se fosse um enorme olho que detectava tudo. A primeira coisa que detectei após ver as duas bolhas de luz, foi um mundo violeta arroxeado feito de algo que parecia painéis e dosséis coloridos. Painéis chatos, semelhantes a telas de círculos concêntricos e irregulares, estavam por toda parte.
Senti uma grande pressão sobre mim e então ouvi uma voz em meu ouvido. Estava "vendo". A voz disse que a pressão se devia a meu movimento. Eu me movia junto com Dom Juan e Genaro.
Senti uma leve sacudida, como se tivesse rompido uma barreira de papel, e encontrei-me diante de um mundo luminescente. A luz se irradiava de toda a parte, mas sem ofuscar. Era como se o sol estivesse por irromper por detrás de nuvens brancas e diáfanas.
Estava olhando para baixo, para a fonte de luz. Era uma visão maravilhosa. Não havia massas de terras, apenas nuvens brancas e fofas e luz. E estávamos caminhando sobre as nuvens.
Então algo aprisionou-me novamente. Eu me movia com a mesma velocidade das duas bolhas de luz aos meus lados. Gradualmente, começaram a perder seu brilho, tornaram-se opacas e finalmente eram Dom Juan e Genaro. Estávamos caminhando por uma rua deserta, afastada da praça principal. Então voltamos.
- Genaro ajudou-o a alinhar suas emanações com as emanações livres ligadas a outra faixa - disse-me Dom Juan. - O alinhamento deve ser um ato muito pacífico, imperceptível. Nada de sair voando, nada de espetacular.
Disse que a sobriedade necessária para deixar que o ponto de aglutinação aglomere outros mundos é algo que não deve ser improvisado. A sobriedade deve estar madura e tornar-se uma força por si mesma para que os guerreiros possam romper impunemente a barreira da percepção.
Estávamos chegando mais perto da praça principal. Genaro não havia dito palavra. Caminhava em silêncio, como que absorto em seus pensamentos. Pouco antes de chegarmos à praça, Dom Juan disse que Genaro queria mostrar-me mais uma coisa: que a posição do ponto de aglutinação é tudo, e que o mundo que ele nos faz perceber é tão real que não deixa espaço para nada além da realidade.
- Genaro fará o ponto de aglutinação dele aglomerar outro mundo só para você ver - disse-me Dom Juan. - Então, você verá que, enquanto ele o perceber, a força de sua percepção não deixará espaço para mais nada.
Genaro caminhou à nossa frente e Dom Juan ordenou-me que girasse os olhos na direção contrária do relógio enquanto olhava para Genaro, para evitar ser arrastado com ele. Obedeci. Genaro estava a cinco ou seis passos de mim. Subitamente, sua forma ficou difusa e num instante ele se desvaneceu no ar.
Pensei sobre os filmes de ficção científica que havia visto, e perguntei-me se temos consciência subliminar de nossas possibilidades.
- Genaro está separado de nós nesse momento pela força da percepção - disse Dom Juan calmamente. - Quando o ponto de aglutinação aglomera um mundo, este mundo é total. Esta é a maravilha em que os antigos videntes tropeçaram sem nunca perceber o que fosse: a consciência da Terra pode dar-nos um impulso para alinhar outras grandes faixas de emanações, e a força desse novo alinhamento faz o mundo desaparecer.
"Todas as vezes que os antigos videntes realizavam um novo alinhamento, acreditavam ter descido às profundezas abaixo ou subido céus acima. Nunca souberam que o mundo desaparece no ar quando um novo alinhamento total nos faz perceber outro mundo total.""

Extraído do livro "O Fogo Interior" de Carlos Castaneda

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