domingo, 18 de setembro de 2011

O Sonho e o Rupigwara - Cultura Indígena Brasileira

Pintura de Walde-Mar de Andrade e Silva
Pouca gente sabe: os índios brasileiros também usam o sonho consciente (sonhos lúcidos) como uma porta para a evolução do Ser, assim como fazem os budistas, toltecas, aborígenes australianos e outras tradições, conforme publicamos em O Sonho - Visão Budista e O Sonho - Visão Tolteca.
O material usado nesta postagem foi coletado de uma tese de doutorado em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento Humano, de José Osvaldo de Paiva, professor da UNIR - Universidade de Rondônia, defendida na USP – Universidade de São Paulo, Brasil, à qual tive o privilégio de assistir. Como observador participante, ele elaborou uma pesquisa etnográfica com métodos qualitativos durante anos.
Vamos falar um pouco de conceitos da cosmogonia e visão de mundo de uma etnia específica entre as 32 do Estado de Rondônia (com 26 línguas diferentes) e outras circundantes, pertencentes ao grupo indígena Tupi. É a etnia Kawahib representada principalmente pelos índios Uru-Eu-Wau-Wau, que se auto denominam Jupa’u.
A base da visão de mundo Kawahib está assentada no conceito de que “o Universo está formado por metades, no qual nada é completo, nem mesmo o indivíduo”. A metade social se completa com o casamento e a metade individual, apesar de ser uma unidade de consciência “corpo-alma” (gara’o) também se completa com a outra metade: Rupigwara.
Waud H. Cracke, antropólogo e PhD da Chicago University e profundo conhecedor dos índios brasileiros, citado na tese, se questiona sobre qual seria a origem desse sistema de metades tão profundamente enraizado entre os grupos Kawahib e sobre o fato de esse sistema não existir em nenhuma outra cultura Tupi-Guarani. Mistéério.
Mas o que é de fato o Rupigwara?
É aqui que a coisa fica interessante e se alinha com as antigas tradições do planeta: rupigwara é o corpo do sujeito no sonho, o corpo de sonhar, ou o corpo energético sob controle do sujeito, consciente e atuante, que inicialmente precisa sofrer o processo de mbojipowahav, ou seja, “ser amansado, configurado”. Esse procedimento do sujeito para tornar a sua metade rupigwara amigável, inclui a tocaia (ae’ Tokaia), um lugar para a realização também da cura e aprendizagem durante as suas viagens em “outros mundos” por intermédio do seu rupigwara.
Esse local, a tocaia, também usado com outro nome nas práticas toltecas mexicanas, é o ambiente ideal criado para as ações do poder xamânico dos Kawahib. Na língua Tupi-Kawahib, o termo t’okaia é usado para designar uma cabana, tapume, ou pequena casa temporária de palha utilizada pelo caçador para realizar as esperas para a caça, às vezes em cima das árvores, ou pelo pajé, representante do xamanismo indígena, para se relacionar com os poderes. Quando se trata do sonho,  ela pode até ser imaginária. 

É um termo derivado de okaia, “cercado”, e há um outro termo que é hokaia, que significa “arapuca, armadilha para capturar animais”. Todos esses termos nos remetem à idéia de “um local temporário para realizar-se determinada função de uma atividade que caracteriza o okahua’ga, o caçador”. Por isso, em termos de atitude, o xamã ou pajé comporta-se como um caçador buscando um outro tipo de alimento diferente da caça habitual, aliás como na cultura tolteca onde o “engradado” fazia o mesmo papel de ajudar o recolhimento e o silêncio do mental, imprescindíveis para o “guerreiro” se aventurar na sua viagem na “segunda atenção”. 
O índio precisa fazer oamongó – “sonhar a presa”, ou precisamente “prendê-la, amarrá-la no sonho, transformar em presa”, pendurá-la. A síntese seria “pendurar a atenção em algo”. A prática do xamã mostra que esse algo é o silêncio.
Os aborígenes australianos também”sonham a caçada” num ritual na véspera, e depois vão apenas “buscar a presa” que já foi caçada antes, no sonho.
Essa tocaia proporciona o isolamento necessário ao xamã e pode ser construída dentro da casa grande, a okahuga, ou no terreiro, ou num ambiente distante. O importante é ele fechar um ambiente que esteja inteiramente sob o seu controle, e praticar muito, no silêncio (ausência de pensamentos). Esse estado de “não se ouvir” ou “silêncio do mental” chama-se yviapi, um verbo que significa “ser quieto” ou “falta de ação”. A tocaia porém é mais que o abrigo e pode mesmo ser feita em qualquer lugar aberto para um praticante experimentado, se bem que os pajés preferissem a cabana por questões de hábitos culturais e de segurança. Ao se aventurar na vastidão do universo através do corpo sonhador ou rupigwara do pajé, o corpo físico ficava protegido na tocaia e, às vezes, com um companheiro de fora para acordá-lo, resgatá-lo, ou mesmo lembrá-lo da sua tarefa com um doente a ser curado com os poderes que ele ia buscar.
Às vezes um anhan’ga, espírito não orgânico considerado maléfico, produz pesadelos no praticante para poder se alimentar da emoção das angústias geradas nele. Um pagé experimentado pode porém  oferecer uma descarga dosada de emoção amigável, pois o ser inorgânico não diferencia angústia de amor, tudo é emoção e portanto alimento. Há uma relação recíproca de interesse entre o anhan’ga  e o sonhador. O sonhador, ao induzir uma relação estável de afeto com o anhan'ga, pode então obter o poder de ser transportado para outros lugares neste e em outros mundos e tomar novas formas na sua aparência exterior, como por exemplo adquirir a aparência de animais como o coiote, corvo, águia e outros. Vixe...
A prática visa os resultados mesmo sem entender propriamente o que acontece. É o corpo que aprende a chegar ao rupigwara, o corpo sonhador, não a mente. Ao se conseguir isso, a aparência do céu que é "visto" muda para uma cena de lampejos rajados que são sentidos no tórax do sonhador e são semelhantes aos emanados pelo kwandu-hua,
um conhecido gavião real (ou hárpia) repleto de poder e mistério, que tem o poder de desaparecer repentinamente. Os Kawahib usam as penas desse mesmo gavião na natureza para dar poder às suas flechas. Os toltecas, por sua vez, chamavam-no de “A Águia”, ou “O Mar Escuro Da Consciência”. Só mudam os nomes nas tradições.
Outra faceta do processo do rupigwara é o pajé como um médico, curador, se relacionar com os seres não humanos, inorgânicos, que habitam o mesmo cosmo conosco, para então obter a cura de seus pacientes.
Na terapêutica indígena, o sonho é onde a cura acontece. Nesse mundo ao invés de penetrá-lo, se é penetrado por ele, e o rupigwara da planta, que sonha as 24 horas do dia, “sonha o homem” e opera a cura nele. Na verdade os rupigwaras, corpos energéticos conscientes da planta e do homem se encontram no sonho e a tarefa do xamã é colocar a planta e o espírito dela dentro do corpo do homem através das canções e do sopro, no sonho.
Curiosamente, os índios não dizem que “alguém é pajé” mas sim que “alguém tem pajé”, um poder e dom que não é necessariamente inato. Infelizmente os pajés, xamãs indígenas detentores desse poder e conhecimento do sonho e do rupigwara, o corpo sonhador, estão sendo desvalorizados, menosprezados e mesmo perseguidos e mortos pelos próprios índios na cultura estudada, que quase não tem mais pajés, graças ao preconceito introduzido pelos “pseudo missionários”, religiosos ou disfarçados, geralmente “cristãos”. Uma lástima. Puro Kali Yuga. Pouco desse conhecimento sobreviverá em algumas décadas se não for preservado...
Pessoas como o Osvaldo com sua tese e seu trabalho, e outros acadêmicos devotados, tem uma missão nobre de preservar esse tesouro de conhecimento. A compreensão disso sequer aparece na tela de interesses dos governos brasileiros, cínicos e corruptos. O Dalai Lama chamou ontem no Brasil a corrupção de "o novo câncer da humanidade". Esses governos estão mais interessados na pilhagem dos recursos do Estado, no dinheiro de eventos como a Copa do Mundo, os royalties futuros do petróleo, e  em engordar as contas bancárias de seus “representantes”, do que preservar tradições brasileiras importantes para a humanidade.
#Pronto, falei.


ATENÇÃO:
Quem quiser fazer download da tese, digite  a palavra Rupigwara no Google. e aparece em primeiro lugar o link da USP. Descendo na página embaixo à esquerda clique em tesosvalbibliot.pdf (que está grafado em azul)

2 comentários:

  1. Se os detratores do Castaneda soubessem disso, teriam acusado ele de "inventar" o toltequismo com base nos Jupa’u... Bem como você diz Arnaldo, puro Kali Yuga!

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