domingo, 5 de junho de 2011

Os 9 bilhões de nomes de Deus

Hoje é dia de descanso (pero no mucho). Não tem informações, nem práticas, nem ensinamentos das tradições antigas. Mas, como na busca interior não tem descanso, hoje só tem ensinamento disfarçado, se considerarmos a desconstrução mental como um ensinamento. E ela é. Esse conto de 1953, como diria Don Juan, é uma “cambalhota do pensamento”, é uma jóia do Realismo Fantástico, tão caro ao grande escritor que foi Arthur Clarke. O conto resgata o livro maravilhoso onde está publicado: “O Despertar dos Mágicos”, que qualquer iniciante de buscador deveria ter na cabeceira. É um instrumento de desprogramação racional, somado com mistério, ideal para quem deseja escapar da prisão padronizada dos “hábitos e rotinas” mentais, emocionais e físicas, como faziam os toltecas que queriam o verdadeiro “namoro com o Conhecimento”. Após a desprogramação e o contato com o insólito quando somos jovens, já dá para intuitivamente procurar no Invisível, com a mente vazia, um caminho autêntico de busca interior.  Eu li o livro aos 18 anos, como disse antes neste blog na página inicial “Quem escreve? Por que?”. Só para situar, esse conto tem um traço surpreendente de "anti-mesmice" e imprevisibilidade, um perfume raro encontrado em gente fora de esquadro, "desconstrutores" como James Hoy Fort, Flamarion, Gurdjieff, Dali, Jodorowski, Julio Verne, Tarkowski e alguns mestres Zen. Desconstruir-se é uma forma de renascer. E como dissemos em "O mistério de Cristo eo Sol", temos que "renascer do espírito para ver o Reino". 
Vamos ao conto:
“O doutor Wagner conseguiu se conter. Era conveniente. Depois disse:
- O seu pedido é um pouco desconcertante. Que eu saiba, é a primeira vez que um mosteiro tibetano faz a encomenda de um computador. Não quero ser curioso, mas estava longe de pensar que semelhante instituição pudesse necessitar dessa máquina. Posso perguntar-lhe em que deseja utilizá-la?
O Lama ajeitou as dobras da sua túnica de seda e pousou sobre a mesa a régua de calcular com a qual acabava de efetuar conversões libra-dólar.
- Naturalmente. O seu computador versão .5 pode fazer, segundo diz o catálogo, todas as operações matemáticas até 10 decimais. No entanto, o que me interessa são letras, não números. Pedir-lhe-ei, portanto que modifique o circuito de saída de forma que imprima letras em vez de colunas de números.
- Não compreendo muito bem...
- Desde que nosso mosteiro foi fundado, há mais de três séculos, que nos consagramos a um determinado trabalho. É um trabalho que pode parecer-lhe estranho e peço que me escute com a maior largueza de espírito.
- De acordo.
- É simples. Tentamos organizar a lista de todos os nomes possíveis de DEUS.
- Perdão?
O lama continuou imperturbavelmente:
-Temos excelentes motivos para crer que todos esses nomes de DEUS incluem quando muito nove letras do nosso alfabeto.
- E ocuparam-se disso durante três séculos?
- Sim. Tínhamos calculado que precisaríamos de quinze mil anos para terminar o trabalho.
O doutor deu um assobio de vencido e disse um pouco atordoado:
- OK, agora compreendo porque deseja alugar uma das nossas máquinas. Mas qual é o objetivo da operação?
Durante uma fração de segundo o lama hesitou e Wagner receou ter ofendido aquele estranho cliente que acabava de fazer a viagem Lhassa-Nova Iorque com uma régua de calcular e o catálogo da empresa no bolso de sua túnica cor de açafrão.
- Chame a isto um ritual, se quiser – disse o lama – mas é umas das bases fundamentais da nossa religião. Os nomes de Ser Supremo, Deus, Júpiter, Jeová, Alá, etc., não passam de etiquetas feitas pelos homens. Certas considerações filosóficas, demasiado complexas para que as possa expor agora, deram-nos a certeza de que, entre todas as perguntas e possíveis combinações das letras, se encontram os verdadeiros nomes de DEUS. Ora, o nosso objetivo é descobri-los e escrevê-los todos.
- Já compreendo: Começaram por a.a.a.a.a.a.a.a.a., e acabarão por chegar a z.z.z.z.z.z.z.z.z.
- Simplesmente utilizamos o nosso alfabeto. Evidentemente que lhe há de ser fácil modificar a impressora elétrica de forma que ela utilize o nosso alfabeto. Mas o problema mais importante será o de preparar os circuitos especiais de forma que eliminem antecipadamente as combinações inúteis. Por exemplo, nenhuma das letras deve aparecer mais de três vezes sucessivamente.
- Três? Quer dizer duas...
- Não. Três. Mas a explicação completa exigiria muito tempo, mesmo que o senhor compreendesse a nossa língua.
Wagner disse precipitadamente:
- Claro, claro. Continue por favor.
- Ser-lhe-á fácil adaptar o computador em função desse objetivo. Com um plano bem elaborado, uma máquina desse gênero pode trocar as letras uma após outra e imprimir um resultado. Desta forma, concluiu calmamente o lama, aquilo que nos levaria ainda quinze milênios estará terminado em cem dias.
O doutor Wagner sentia que ia perdendo o sentido da realidade. Através das janelas do edifício, os ruídos e as luzes de Nova Iorque perdiam a intensidade. Sentia-se transportado a um mundo diferente. Lá longe, no seu longínquo asilo montanhoso, geração após geração, os monges tibetanos, há trezentos anos, elaboravam a sua lista de nomes desprovidos de sentido... Não havia, então, limite para a loucura dos homens? Mas o doutor Wagner não devia deixar transparecer os seus pensamentos. O cliente tem sempre razão...
E respondeu:
- Não duvido que possamos modificar a máquina versão .5 de forma a imprimir listas desse gênero. A instalação e a conservação é que mais me inquietam. Aliás, não será fácil enviá-la para o Tibete.
- Nós trataremos disso. As peças separadas têm dimensões suficientemente pequenas para serem transportadas por avião. De resto, foi esse o motivo por que escolhemos a máquina. Envie as peças para a Índia, nós nos encarregaremos do resto.
- Deseja contratar dois dos nossos engenheiros?
- Sim, para montarem e vigiarem a máquina durante cem dias.
- Vou mandar instruções à direção de pessoal – disse Wagner enquanto escrevia na agenda. – Mas restam duas questões a resolver...
Antes que tivesse podido terminar a frase, o lama tirou do bolso uma delgada folha de papel:
- Esta é a situação da minha conta no Banco Asiático.
- Muito obrigado. Está muito bem... Mas, se permite, a segunda questão é de tal maneira elementar que hesito em mencioná-la. Acontece muitas vezes esquecermos qualquer coisa evidente... Têm uma fonte de energia elétrica?
- Temos um gerador Diesel elétrico de 50 kw de potência, 110 volts. Foi instalado há cinco anos e funciona bem. Facilita-nos a vida no convento. Compramo-lo sobretudo para acionar os “moinhos de orações”.
- Ah! Sim, evidentemente, eu devia ter pensado nisso...

Do parapeito a vista era vertiginosa, mas habituamo-nos a tudo.
Já haviam decorrido três meses e Jorge Hanley já não se impressionava com os seiscentos metros em vertical que separavam o mosteiro do quadriculado dos campos na planície. Apoiado sobre pedras que o vento arredondara, o engenheiro contemplava, com olhar triste, as montanhas longínquas de que ignorava o nome. “A operação nome de DEUS”, como a batizara um humorista da companhia, era sem dúvida a pior tarefa que jamais tivera.
Semana após semana, a máquina versão .5, modificada, cobrira milhares de folhetos de uma incrível algaravia. Paciente e inexorável, o computador reunira as letras do alfabeto tibetano em todas as combinações possíveis, esgotando série após série. Os monges recortavam certas palavras à saída da impressora e colavam-nas com devoção em enormes registros. Dentro de uma semana acabariam.
Hanley ignorava quais os cálculos obscuros que os levavam à conclusão de que não deviam estudar conjuntos de dez, vinte, cem mil letras e nem pretendia sabê-lo. Nos seus pesadelos sonhava, às vezes, que o grande Lama decidira bruscamente complicar um pouco mais a operação e que o trabalho continuaria até o ano 2060. Aliás, aquele estranho homenzinho parecia perfeitamente capaz de o fazer.
A pesada porta de madeira estalou. Chuck vinha ter com ele no terraço. Fumava, como de costume, um charuto: tornara-se popular entre os lamas distribuindo-lhes havanas. Aqueles tipos poderiam ser completamente amalucados – pensou Hanley – mas não eram puritanos. As freqüentes expedições à aldeia não tinham sido desprovidas de interesse...
- Ouve, Jorge – disse Chuck – vamos ter aborrecimentos.
- A máquina escangalhou-se?
- Não.
Chuck sentou-se sobre o parapeito. Era espantoso, pois habitualmente receava ter vertigens:
- Acabo de descobrir o objetivo da operação.
- Mas já o sabíamos!
- Sabíamos o que os monges queriam fazer, mas não sabíamos o porquê.
- Bah! São uns loucos...
- Escuta, Jorge, o velho acaba de explicar-me. Eles crêem que assim que tenham escrito todos aqueles nomes, e segundo pensam são cerca de nove bilhões, o objetivo divino será atingido. A raça humana terá realizado a tarefa para que foi criada.
- E então? Esperam que nos suicidemos?
- Não. Quando a lista estiver terminada, DEUS intervirá e será o fim.
- Quando terminarmos será, então, o fim do mundo?
Chuck teve um risinho nervoso:
- Foi o que eu disse ao velho. Ele olhou-me de uma forma estranha, como um professor olha para um aluno particularmente estúpido, e disse-me: “Oh, não será assim tão insignificante!”
Jorge refletiu um instante.
- É um tipo que visivelmente tem idéias largas mas, mesmo assim, que importância tem isso? Nós já sabíamos que eram loucos.
- Sim. Mas você não vê o que pode acontecer? Se a lista ficar pronta e se as trombetas do Anjo Gabriel, versão tibetana, não soarem, eles podem decidir que é por nossa culpa. Afinal de contas, era a nossa máquina que eles utilizavam. Não gosto disso...
- Percebo... – disse lentamente Jorge – mas eu já vi tanta coisa! – Quando era garoto na Luisiana apareceu um pregador que anunciou o fim do mundo para o domingo seguinte. Houve centenas de tipos que acreditaram nele. Alguns mesmo chegaram a vender suas casas. Mas ninguém se enfureceu no domingo seguinte. As pessoas pensaram que ele apenas errara um pouco os cálculos e muitas delas ainda acreditam.
- Caso você não percebeu, não estamos na Luisiana. Estamos ambos sozinhos, no meio de centenas de monges. Adoro-os, mas preferia estar longe quando o velho lama aperceber-se de que a operação falhou.
- Há uma solução. Uma pequenina sabotagem inofensiva. O avião chega dentro de quatro dias à razão de 24 horas por dia. Basta-nos começar a reparar qualquer coisa durante dois dias ou três dias. Se calcularmos bem, poderemos estar lá em baixo, no aeroporto, quando o último nome sair da máquina.
Sete dias mais tarde, enquanto os pequenos pôneis das montanhas desciam o caminho em espiral, Hanley disse:
- Sinto um pouco de remorsos. Não fujo por medo, mas porque tenho pena. Não gostaria de ver a cara daqueles pobres homens quando a máquina parar.
- Na minha opinião – disse Chuck – eles desconfiaram que fugimos e não se incomodaram. Agora já sabem até que ponto a máquina é automática e que não precisa de vigilância. E supõem que não haverá nenhuma depois.
Jorge voltou-se para trás e olhou.
Os edifícios do mosteiro apareciam em silhueta escura sobre o poente. De vez em quando brilhavam pequeninas luzes sob a massa sombria das muralhas, como as vigias de um navio singrando no mar. Lâmpadas elétricas colocadas sobre o circuito da máquina .5.
"Que aconteceria ao computador?", pensou Jorge. "Na sua fúria e desapontamento iriam os monges destruí-lo? Ou então recomeçariam tudo?"
Como se ainda lá estivesse, via o que naquele momento se passava na montanha atrás das muralhas. O grande lama e os seus assistentes examinavam as folhas, enquanto alguns noviços recortavam os nomes barrocos e os colavam no enorme caderno. E tudo aquilo era feito em religioso silêncio. Só se ouvia a impressora batendo no papel como se fossem chuva miúda. O próprio computador, que combinava milhares de letras por segundo, estava completamente silencioso...
A voz de Chuck interrompeu o seu devaneio:
- Lá está ele! Que grande alegria que dá!
Semelhante a uma minúscula cruz prateada, o velho avião de transportes DC3 acabava de pousar lá embaixo no pequeno aeródromo improvisado. Aquela visão dava vontade de beber um grande copo de uísque gelado. Chuck começou a cantar, mas depressa se calou. As montanhas não o encorajavam.
Jorge consultou o relógio.
- Estaremos lá dentro de uma hora – disse. E acrescentou: - Você acha que o cálculo já terminou?
Chuck não respondeu e Jorge levantou a cabeça. Viu o rosto de Chuck muito branco, voltado para o céu.
- Olha! – murmurou Chuck.
Jorge, por sua vez, levantou os olhos.
Pela última vez, por cima deles, na paz das alturas, uma a uma as estrelas começaram a se apagar...”


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3 comentários:

  1. Uaaauu, que bom ter visto este video, Águas -Masaru Emoto. Sempre esquecemos do que sabemos, e quando reencontramos é um alivio para a alma.
    Obrigada preto pelo video.
    Luara

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  2. É isso aí cumadre. O que mais me tocou é que a gente fica todo o tempo falando abobrinhas para os outros, sobre os outros, contra os outros...né não? A gente devia tomar vergonha na cara...
    Abração

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